sexta-feira, 11 de abril de 2014

economic secu

PROCESSO DE TRADUÇÃO POÉTICA NA CASA GUILHERME DE ALMEIDA

POEMA: ‘economic secu[1]de e.e.cummings

Poema original

economic secu
rity” is a cu
rious excu

se
(in

use among pu
rposive pu
nks)for pu

tting the arse
before the torse



e.e.cummings
Tradução Poética

o seguro, o pecú
lio” são descu
lpas ao cu

lto
(co

isa em apu
ro por pu
tos)que empu

rra  o  ânus
antes do crânio


tradução:
Cecilia Furquim

               ANÁLISE:                           
                O poema corta a sílaba ‘cu’ /kju:/, na 1ª estrofe, nas palavras: security [sɪˈkjʊərɪtɪ], curious [ˈkjʊərɪəs] e excuse [ɪkˈskjuːs]. Ao fazer isso, chama atenção para algo que representa o símbolo químico do elemento Cobre (também, por sua vez, símbolo de dinheiro), interpretação reforçada pelo uso da expressão: ‘economic security’. O corte isolando esta sílaba no fim dos três versos é, portanto, bem significativo, reiterando a imagem que será problematizada no poema.  A sílaba aparece em três combinações diferentes: secu, cu, excu. No plano do conteúdo, a ‘segurança econômica’ é colocada como valor que não assume seus reais interesses, sendo símile de ‘excuse’ (desculpa). As aspas que aparecem somente do lado direito da expressão desestrutura a leitura habitual que temos com aspas funcionando sempre para abrir e fechar algo que será ressaltado, isolado dos demais. Neste caso elas só fecham, não abrem.

                A segunda estrofe forma um bloco isolado cuja intencionalidade é menos clara, mas lendo-se o 1ª verso ‘se’ juntamente com o 2ª ‘in’, podemos ter um som igual ao da palavra ‘seeing’ [ˈsiːɪŋ] que pode ser o substantivo ‘habilidade de visão’ ou a conjunção (= ‘inasmuch as’ ou ‘since’). Ela pode ter então um significado em si, enquanto estrofe. A desculpa mencionada no primeiro verso é ‘vista’, ou a idéia que esclarece a ‘segurança econômica’ como sendo na verdade uma desculpa para outros fins será introduzida pela conjunção ‘seeing’. Outra leitura seria não prolongar o som do ‘i’ /i:/ e ler essa estrofe como ‘sin’ (sɪn), significando simplesmente ‘pecado’, no caso remetendo ao pecado da ‘avareza’. O uso do parêntesis é também trabalhado de forma expressiva pelo poeta. Indicando uma digressão, ele, no caso dessa estrofe, mostra ‘sin’, ressaltando a palavra isolada ‘in’ permitindo a leitura de ‘sin’ como algo que estaria dentro, interiorizado no homem.

                Na 3ª estrofe, o mesmo recurso de corte da 1ª é feito com a sílaba ‘pu’ (desta vez totalmente isolada, sem nenhuma combinação). Ela aparece nas palavras: ‘purposive’ [ˈpɜːpəsɪv], ‘punk’ (pʌŋk)  e ‘putting’ /pʊtɪŋ/. O som da letra ‘u’ aí varia, sendo o primeiro /ɜː/, o segundo /ʌ/ e o terceiro / ʊ/. A sílaba sozinha não possui aparentemente nenhum significado em inglês, como acontece com ‘cu’, porém ela mantém a sonoridade da letra ‘u’, já impressa na 1ª estrofe do poema, ainda que em suas variações / ɜː/, /ʌ/, / ʊ/. Também seu som, se lido isoladamente, remete à palavra ‘poo’ /puː/, que significa o substantivo ‘excremento’ ou o verbo ‘defecar’. Essa possibilidade é reforçada pela referência imagética que vem em seguida da palavra ‘arse’ (‘anus’ ou ‘pessoa burra, tola’). Também as escolhas léxicas nesta estrofe são colocadas de forma negativa, como ‘purposive punks’, sendo ‘punk’ na gíria, conforme o dicionário, uma pessoa jovem, rebelde, de um determinado movimento (significado neutro), mas também palavra que pode designar uma pessoa inferior, sem valor, podre (significado mais negativo).  Esta estrofe imprime negatividade aos defensores e usuários da ‘segurança econômica’.
 
                A última estrofe fecha o poema com a apreciação do eu lírico sobre o que está oculto na frase ‘economic security’, apresentando a imagem ‘putting the arse before the torse’. A estrofe remete ao ditado “putting the cart before the horse”, que em português seria: “colocar o carro à frente dos bois”, fazendo uma relação sonora entre ‘cart’ e ‘arse’, bem como com ‘horse’ e ‘torse’. A palavra ‘torse’ não é comum, mas consultando-se o dicionário sabemos que é um sinônimo de ‘wreath’ (coroa) no contexto da heráldica. Remete também possivelmente a torso (tronco humano). O fecho do poema está criticando a inversão existente na valorização de ‘arse’ em detrimento de ‘torse’, que sendo ‘coroa de flores’, seria algo usado na cabeça. São duas imagens de algo circular, e também aproximadas pelo som /ɑː(r)s/, (ˈtɔr s). Porém com valores e funções bem diferentes: ‘torse’ está no âmbito do pensar, raciocinar, enquanto ‘arse’ está no âmbito das necessidades fisiológicas.  
               
                Observando a forma como as estrofes são criadas pelo poeta, percebemos uma construção moderna, diferente, mas em alguns pontos parecida com algumas categorias do velho soneto. No início se propõe um tema, nesse caso questionar a validade de ‘segurança econômica’. Em seguida se apresenta uma apreciação negativa dos defensores deste tema, e termina por revelar uma crítica contundente ao significado que está oculto no tema: aqueles que valorizam e lutam pela segurança econômica estão valorizando apenas as funções básicas, fisiológicas do homem, (aquilo que o prende a instintos mais primitivos de sobrevivência) e deixando em segundo plano outras funções mais importantes, como o uso da razão, a construção mais abstrata do mundo, onde se encontram grandes conquistas da civilização. O poema é conhecido como sendo uma crítica ao programa que o presidente Roosevelt tinha lançado para tirar o país da recessão, conhecido como “New Deal”. Cummings era um crítico ferrenho de Roosevelt e repetidamente ridicularizou o programa WTA. Sendo assim a crítica no poema parece incidir sobre o paternalismo do governo que artificialmente produz ofertas de trabalho ao invés de preparar a população, com educação e treinamento, para que ela possa se encaminhar por si só às demandas econômicas. Essa análise pode ser observada nas afirmações abaixo:

               Collected Poems (que inclui 22 poemas novos) e 50 Poems ressaltam um aspecto da “maioriadaspessoas” (‘mostpeople’) a que demonstra especial desprezo: o desejo pela segurança econômica. Naquele momento, o ‘New Deal’ de Roosevelt havia implementado Seguridade Social, e o ‘WPA’ havia encaminhado com sucesso milhões de volta ao trabalho em projetos governamentais. Cummings desaprovava e não tinha confiança em Roosevelt, e como Frost, achava que o ‘New Deal’ (chamado por ele de ‘nude deel’) estava no caminho do coletivismo odioso que ele havia visto na Rússia. Muitos poemas desses livros tocam o problema, incluindo esta bagatela:
                           [cita trechos do poema “economic secu”] ...
                  Brincando com a expressão “putting the arse before the horse”, Cummings afirma que essa preocupação econômica está indo ‘backasswards’ (‘pracutrás’) e nessa posição a idéia naturalmente fede (‘pu’ é repetido duas vezes mais nos versos aqui suprimidos).  [...]”[2]

                Também o aspecto visual das estrofes pode ter significado, mas não é claro. A 1ª estrofe tem versos cada vez menores, formando o desenho: (     ).   Na 2ª estrofe o último verso tem uma letra a mais ocupando o espaço, formando o desenho contrário: (       ). A 3a estrofe repete a forma da 1ª e a quarta repete a forma da 2ª, com duas letras a mais no último verso. Manter essa visualização na tradução aumenta as dificuldades do tradutor.
              
              

TRADUÇÃO:

1ª tentativa

a constância eco
nômica” é  bre
vê que enco

bre
(ve

leidades espú 
rias dos pu
tos)o impu

tar do ânus
sobre o crânio

 


                Na 1ª tentativa de tradução procurei formar a palavra ‘cobre’ isolando cada uma das sílabas desta palavra no final de versos subseqüentes (versos 1 a 4), mas essa opção tinha perdas sonoras, além de não trabalhar com as sílabas tônicas no fim de três versos, atrapalhando também a sonoridade.


                Na 2ª e na 3ª tentativas procurei manter as sílabas ‘cu’ e ‘pu’ cortando palavras em que elas aparecem como tônicas, ficando assim mais limitadas as escolhas em português, aumentando o grau de dificuldade da tradução. Julguei, no entanto, importante manter as mesmas sílabas e trabalhar com elas enquanto tônicas. No caso de ‘cu’ a representação de cobre é igual em português, e ela tem também a representação adicional para nós, que a sílaba ‘pu’ possivelmente tem em inglês, de ligar-se a ‘excremento’, ‘defecar’, ligando-se também à palavra ‘arse’, trazendo uma concentração de significados bem vinda ao poema traduzido. Também o som de ‘pu’ no nosso contexto pode talvez remeter à palavra ‘pum’, mas isso é menos claro. 
                Para perceber melhor a sonoridade original e assim procurar mantê-la na tradução, achei por bem suprimir temporariamente os cortes dados no poema visual. Ao fazê-lo encontrei uma possível combinação de três versos (dois decassílabos e um eneassílabo), com diferentes acentos:

economic secu/rity'' is a cu/rious                      10 (3/6/10)
excu/se (in/ use among pu/rposive pu/nks)     10 (2/4/7/10)
for pu/tting the arse/ before the torse                9 (2/5/7/9)


2ª tentativa

a constância no acú
mulo” é descu
lpa ao cu

lto
(em

uso e em apu
ro por pu
tos)do pu

lo do ânus
sobre o crânio


                Meu esforço foi o de, conjuntamente com o aspecto visual, criar também a mesma sonoridade de sílabas e acentos. Assim, na segunda tentativa de tradução encontrei algo mais próximo ao som do poema quando lido: 

a constância no amulo” é desculpa              10 (3/6/10)            
ao culto (em uso e em apuro por putos)          10 (2/4/7/10) 
do pulo do ânus sobre o crânio                         9 (2/5/7/9)

         

3ª tentativa

o cuidar do pecú
lio” é uma descu
lpa que incu

te
(cu

lto em dispu
ta por pu
lhas)o pú

lpito do ânus
sobre o crânio


Porém, ao montar o poema visualmente vemos a segunda estrofe sem nenhuma expressividade em si: “lto/(em”. Fiz outra tentativa (a 3a) com a sílaba ‘cu’ isolada na 2ª estrofe também, mas me pareceu menos sonora, além de ter os parênteses numa posição não muito natural, como está no inglês.

o cuidar do pelio é uma desculpa                      10 (3/6/10) 
que incu/te (cu/lto em dispu/ta por pu/lhas)        10 (2/4/7/10) 
o pú/lpito do ânus/ sobre o crânio                          9 (2/5/7/9)

         

A partir desse ponto apresentei esse processo ao grupo de tradutores que realizava a oficina, com a orientação do tradutor e versionista Carlos Rennó. Como a preocupação formal já estava avançada a análise incidiu principalmente sobre quais escolhas léxicas estavam mais bem resolvidas no poema e quais não soavam naturais. A palavra ‘pecúlio’ foi bem aceita e Carlos Rennó inclusive achou a escolha interessante por remeter a uma canção de Gilberto Gil composta quando Gil tinha 25 anos, inspirada numa notícia de jornal em que outro jovem também de 25 anos havia morrido e deixado à família um seguro que estava então sendo reclamado. Gil procurou fazer na canção “uma investida contra a busca de toda segurança burguesa, de todos os anteparos, armaduras e ações contra as intempéries da vida[3]”, fazendo o rapaz na canção morrer diante da companhia de seguros. A combinação de palavras envolvendo ‘pecúlio’ usada na tradução (“o cuidar do pecúlio”) não soava natural, porém. A partir dessa sugestão, pensei em fazer uma alusão explícita a um dos versos da canção de Gil (o seguro de vida, o pecúlio), apenas suprimindo o complemento ‘de vida’.  

Também discutimos sobre possibilidades ainda não realizadas até então de recriar a alusão ao ditado presente no original. Apresentei duas novas opções que lembrassem o ditado em português: “colocar o carro à frente dos bois”. A 4ª tentativa procurou seguir o esforço de Cummings quando troca as palavras do ditado por outras com semelhança sonora: “que empurram o escarro à frente da voz”. Já a 5ª tentativa propõe uma semelhança sonora somente com a palavra carro: “que empurra o ralo à frente do raro”.





4ª tentativa

o seguro, o pecú
lio”  são descu
lpas aos cu

lto
s(co

mum entre pu
ros pu
tos)que empu

rram o escarro
à frente da voz

5ª tentativa

o seguro, o pecú
lio” são escu
sas ao recu

o
(co

isa de pu
ros pu
lhas)que empu

rra o ralo
à frente do raro

Ficou constatado pelo orientador do grupo que o verbo ‘empurrar’ parecia mais adequado do que o substantivo ‘pulo’ ou ‘púlpito’. No entanto, também em sua opinião, os contrastes léxicos finais das novas tentativas ficaram devendo ao conquistado anteriormente: “ânus/ crânio”. Dessa forma esse contraste foi recolocado na versão final, dentro de uma nova sintaxe: “que empurra o ânus antes do crânio”. O advérbio ‘antes’ foi escolhido por manter a métrica original deste último verso que deve ter somente 4 sílabas poéticas, e por ser uma aliteração/assonância com ‘ânus’.

Também a expressividade da segunda estrofe nas 4ª e 5ª tentativas foram melhor resolvidas com o isolamento de palavras significativas como ‘tosco’ após a letra l (que pode ser lida como o número 1) ou  “oco”. Porém o plural em “cultos” parecia inadequado sonoramente, resultando na escolha dessa palavra no singular, o que gerou a segunda estrofe da versão final: “lto/(co”. Ela sugere a palavra “toco” (resto de algo que se quebrou). Julguei também mais adequado, nas 2º e 3ª estrofes, a escolha da palavra “coisa” ao invés de “comum”, pela parte isolada no corte “isa” ser mais parecida com a palavra “use”.  A palavra ‘putos’ permaneceu ao invés de pulhas, por ela fazer uma reverberação sonora da palavra ‘culto’ usada anteriormente. 

FINAL

o seguro, o pecú
lio” são descu
lpas ao cu

lto
(co

isa em apu
ro por pu
tos)que empu

rra  o  ânus
antes do crânio



 


Resultado Final:

o seguro, o pecú/lio são descu/lpas                      10 (3/6/10) 
ao cu/lto (co/isa em apu/ro por pu/tos)                10 (2/4/7/10) 
que empurra o ânus antes do crânio                      9 (2/4/6/9)


O resultado considerado final apresenta porém uma desvantagem no aspecto visual, em que as imagens formadas pelos desníveis do alongamento dos versos no lado esquerdo das estrofes não reconstitui a visualidade original. A 2ª estrofe ficou com versos de tamanhos idênticos e a 3ª estrofe ficou com uma imagem contrária, com o último verso mais longo do que os anteriores. Uma forma de resolver isso seria uma outra tentativa que traria a seguinte solução:


POSSÍVEL SOLUÇÃO VISUAL

o seguro,o pecú
lio” são descu
lpas ao cu

lto
(co

isa em apu
ro por pu
tos)do pú

lpito do ânus
sobre o crânio


 



o seguro, o pecú/lio são descu/lpas                      10 (3/6/10) 
ao cu/lto (co/isa em apu/ro por pu/tos)                10 (2/4/7/10) 
do pú/lpito do ânus sobre o crânio                        9 (2/5/7/9)


Essa possível solução mantém inclusive os mesmos acentos do original no último verso, porém perde a referência ao ditado. Achei importante manter a forma chamada ‘final’ como tal, ainda que ela não apresente uma correspondência exata do aspecto visual. Por outro lado, além de fazer alusão indireta ao ditado, a solução final conseguiu manter o penúltimo verso menor do que o último. Penso que nesse ponto a correspondência visual seja mais significativa, já que o movimento de antecipar ‘arse’, em relação a ‘torse’ acontece tanto no significado como na forma, assim como ocorre com ‘ânus’ e ‘crânio’. ‘Ânus’ vem antes de duas maneiras, posiciona-se mais à esquerda e também acima de ‘crânio’. Um espaçamento maior do que o natural no penúltimo verso ajudou também a ressaltar essa posição no papel.



Cecilia Silva Furquim Marinho,
julho de 2013




[1] Poema que faz parte do trabalho New Poems que está incluso em Collected Poems, publicado em 1938 : CUMMINGS E.E. in Complete Poems, 1904-1962 edited by George J. Firmage. – Ver., corr. and expanded Ed. containing all the published poetry. New York: Liveright Publishing Corporation, 1994.  p477. No trabalho New Poems, o poema é introduzido pelo número 15 e não possui título.
[2] Trecho traduzido por mim e retirado do trabalho: COHEN, Milton A. Beleaguered Poets and Leftist Critics:  Stevens , Cummings, Frost and Williams in the 1930’s.  Alabama: The University of Alabama Press, 2010. pp 105, 106. In: http://books.google.com.br/books?id=w1z_dmv_CRoC&pg=PA105&lpg=PA105&dq=%22new+deal%22+%22e.e.cummings%22+%22economic+secu%22&source=bl&ots=ThCTD77vGA&sig=nVlchqQbF3W3pTh-dDY42CL6fjA&hl=pt-BR&sa=X&ei=ZY7TUeSZJLPo0wHV44G4Aw&ved=0CCwQ6AEwAA#v=onepage&q=%22new%20deal%22%20%22e.e.cummings%22%20%22economic%20secu%22&f=false (acesso em 03/07/2012).
[3] Depoimento de Gil sobre sua criação, retirado do site oficial de Gilberto Gil: http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=20&letra (acesso em 02/07/2013)