domingo, 2 de julho de 2017

Pelas Caudalosas Camadas e Curvas do Poema-Cauda

                       
                       PELAS CAUDA-
                       LOSAS CAMADAS
                       E CURVAS DO POEMA-CAUDA
  

ou



                        Pelas
                            cauda-
                           losas
                           cam-
                            adas
                          e cur-
                             vas
                                do
                            Poe
                          ma
                            Cau
                             d
                            a.


Trabalho de finalização de curso
História da tradução
Prof. Érico Nogueira
Curso Formativo para Tradutores 2016
Casa Guilherme de Almeida
Aluna: Cecilia Silva Furquim Marinho
Janeiro de 2017




INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar a tradução em Português feita por Augusto de Campos do famoso ‘The Mouse’s Tale’, um poema visual publicado por Lewis Carroll em 1865 no terceiro capítulo de Alice no País das Maravilhas[1]. O poema aparece na trama pela voz do Rato, para cumprir a promessa que havia feito à protagonista Alice de contar uma história que esclareceria o pavor que ele tinha por gatos e cachorros, tendo como plateia não só a menina, como também vários outros animais, um Pato, um Dodô, um Papagaio e outros, todos sentados numa roda.  O Rato introduz a história dizendo: “mine is a long and a sad tale”. A tradução de Campos, intitulada ‘Poema-Cauda’, foi feita em 1986. Como sua obra tem estreita ligação com a música, este poema acabou sendo duas vezes musicado pelos parceiros Péricles Cavalcanti (1996)[2] e Cid Campos (2009)[3].

    
                              
Porém, o escopo dessa análise deve limitar-se ao poema impresso, não vai estender-se aos signos musicais a ela integrados posteriormente, e usará como parâmetro a teoria tradutória partilhada pelos irmãos Campos, que Haroldo dedicou-se a investigar e formular sistematicamente. Em artigo de 1962[4], citando a ‘sentença absoluta’ de Albert Fabri, Haroldo coloca que as obras de arte “não significam, mas são”, que a linguagem literária “não tem outro conteúdo senão sua estrutura”. Prossegue parafraseando também a ‘informação estética’ de Max Bense dizendo que “a informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista”. Seria pois intraduzível porém recriável através do que ele chama de relação de isomorfia, “serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema. ... Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca”.  Em 1985, Haroldo retoma sua teoria incorporando as ideias de ‘transposição criativa’ de Jakobson indicando o processo que deve ser usado pelo tradutor para reproduzir essa relação que ele agora chama de ‘paramorfia’, substituindo o termo ‘isomorfia’:
“Pedagogicamente, o procedimento do poeta-tradutor (ou tradutor poeta) seria o seguinte: descobrir (desocultar), por uma “operação metalinguística” voltada sobre o plano formal (da expressão ou do conteúdo), qual o código de “formas significantes” de que o poema representa a mensagem ou realização ad hoc (qual a equação de equivalência, de comparação e/ ou contraste de constituintes, levada a efeito pelo poeta para construir o seu sintagma); em seguida reequacionar os constituintes assim identificados, de acordo com critérios de relevância estabelecidos in casu, e regidos, em princípio, por um isomorfismo icônico, que produza o mesmo sob a espécie da diferença na língua do tradutor (paramorfismo, com a idéia de paralelismo – como em paráfrase, em paródia ou em paragrama – seria um termo mais preciso, afastando a sugestão de “igualdade” na transformação, contida no prefixo grego iso-).”[5]

Devo reconstituir o esforço tradutório de Augusto investigando então, primeiramente, quais foram os códigos de formas significantes estabelecidos por Carroll e em seguida analisar como Augusto procura reproduzi-los ‘paramorficamente’.

THE MOUSE’S TALE
A narrativa que deu origem ao poema foi contada num passeio de barco que teria ocorrido em 4 de julho de 1862, quando o matemático e escritor inglês teria inventado e relatado as aventuras de Alice para três irmãs: Lorina, Edith e Alice Lidell. A pedidos, ele teria em seguida recriado uma primeira versão da fábula em forma manuscrita, e oferecida num caderno para a menina Alice, sob o título Alice’s Adventures Under Ground. Sua versão posterior melhorada foi publicada pela primeira vez em 1865 com o nome que conhecemos hoje: Alice’s Adventures in Wonderland. As peculiaridades da obra de Carroll, juntamente com as do contemporâneo Edward Lear, passariam a ser denominadas nonsense. O nonsense vitoriano inglês através desses dois escritores renovaria radicalmente a literatura para crianças feita até então e alçaria esse tipo de arte ao prestígio de outros gêneros canônicos feitos para adultos.  É uma literatura carregada de humor e encantamento que se apresentam em brincadeiras com a linguagem e com o sentido, com trocadilhos ou paronomásias, palavras-valise, jogos de palavras, efeitos sonoros e outros malabarismos verbais, além de alusões disparatadas e dissonância na lógica do sentido. Tem pontos de contato com a literatura de vanguarda, como o dadaísmo, surrealismo, concretismo, e inspirou grandes nomes da literatura e da crítica literária modernas como James Joyce e Marshall McLuhan.
O poema escolhido para análise é um entre vários outros poemas ou paródias que o autor mescla em uma prosa que se estende por doze capítulos. Ele ficou conhecido como um exemplo canônico de ‘emblematic verse’[6], ou seja, de uma ideia poética que se expressa tanto verbalmente como visualmente. A narração da fábula pelo Rato a uma audiência curiosa sugere, através da escrita, a tradição do recurso sonoro na contação de histórias:
“Mine is a long and a sad tale!” said the Mouse, turning to Alice, and sighing.

Ao mesmo tempo, impulsionada pela homofonia de tale/tail, a escrita do poema é apresentada visualmente ao leitor pela forma de uma cauda com até cinco curvas, como foi sendo imaginada pela protagonista Alice.
“It’s a long tail, certainly,” said Alice, looking down with wonder at the Mouse’s tail. “but why do you call it sad?” And she kept on puzzling about it while the Mouse was speaking, so that her idea of the tale was something like this: -  (em seguida o poema é apresentado).

De imediato temos claramente no poema um duplo ‘pun’ (trocadilho ou paronomásia): história (tale) e cauda (tail), um expresso verbalmente na fala/escrita e outro expresso visualmente no desenho feito pelas palavras. Um estudo de dois adolescentes de New Jersey, publicado em1989[7], sugere que esse duplo ‘pun’ é na realidade um quádruplo. Eles viram que ao inserir o poema visual dentro do formato convencional, um esquema com duas estrofes de três versos (rimas AAB e CCB) se repete por duas vezes. Essa forma poética é conhecida como “tail-rhyme”[8], ou seja: uma ‘cauda’ que segue dois versos rimados. Nesse caso é também uma ‘tail-rhymed stanza’, já que as caudas de duas estrofes rimam entre si. A tradição, no entanto, normalmente traz essa ‘cauda’ num verso mais curto que aqueles que o precedem. Inovando, Carroll criou um terceiro verso muito mais comprido, sugerindo assim o formato de um rato com cauda longa para cada estrofe:


Fury said to a mouse, 
That he met in the house.
‘Let us both go to law: I will prosecute you.

Come I’ll take no denial:
We must have the trial,
For really this morning I’ve nothing to do.

Said the mouse to the cur, 
‘Such a trial, dear sir,           
with no jury or judge, would be wasting our breath.

I’ll be judge, I’ll be jury,
Said cunning old Fury
-->
‘I’ll try the whole cause and condemn you to death.’


"Thus, the Mouse's Tale in 'Alice's Adventures in Wonderland' includes four puns," their article explains. "(1) the word 'tale' signifies the story the mouse is telling, but includes the tail visually; (2) the word 'tail' signifies the tail of the mouse, but includes the tale it tells; (3) the tale is told in the poetic form of the tail-rhyme; and (4) the line structure of the triplets (two short lines, then a longer line) resembles the shape of a mouse." (New York Times, 1991).[9]
            
Do ponto de vista semântico o poema, além de trazer o tema da predação, também inclui o tema do tribunal como encobrimento da predação, disfarce recorrente na fábula pois também aparece no final, quando Alice assiste e é testemunha do julgamento insano do Valete acusado de ter roubado as tortas. Martin Gardner em sua edição comentada de Alice lembra que o poema teria a inadequação de não explicar o medo que o Rato teria de gatos como havia prometido fazer, já que ele somente se refere ao cachorro. É apresentado como Fury (com letra maiúscula, indicando ser esse o nome) e adjetivado como ‘cur’ (cachorro sem raça definida, o chamado ‘vira-lata’, também significando alguém covarde).  O significado de ‘Fury’ sugere algo descontrolado e o significante sugere um trocadilho com ‘furry’ (peludo). Somente a figura do cão povoa os medos do Rato, não há referência nenhuma ao medo de gatos. Essa incompletude na explicação é perfeitamente coerente com o nonsense da fábula e dessa forma a ‘inadequação’ pode ser vista como um ganho. O contraste semântico e correspondência formal trazido em breath/death é genial. Na disposição tipográfica da cauda, as rimas e o ritmo são deslocados com as letras tornando-se cada vez menores e os versos e mesmo palavras se quebrando antes de seu término. Assim, o que seriam as duas primeiras estrofes formam a primeira e grande curva da cauda, enquanto o que seria a outra metade do poema começa com a segunda curva, formando em seguida mais três curvas cada vez menores. Pensando que a primeira parte do poema se dá pela voz do cão, o contraste grande/pequeno desses animais em conflito é reforçado. O fato da última palavra, a que finaliza tudo, a menorzinha de todas ser ‘death’ também reforça a ideia da morte como fim e desaparecimento.
O conflito entre cão e rato, que nesse caso é um camundongo, se amplifica semanticamente pelas palavras que a eles são associados. Ao cão, temos ‘Fury’, ‘law’, ‘trial’, ‘cur’, ‘sir’, ‘judge’, ‘jury’, ‘cunning’ e ‘old’. Ao camundongo temos a palavra ‘denial’ e ‘death’. O tamanho e qualidades do cão se agigantam com a autoridade e controle que tem da lei e de seus procedimentos. Ao camundongo restam apenas a negação (não colaboração) e a morte. As palavras que se referem a ambos, como aquilo que eles têm em comum, são ‘house’ e ‘breath’, o convívio no mesmo espaço. As quebras do poema visual sugerem outros significantes que não seriam visíveis na forma tradicional. A palavra ‘prose/cute’ isola ‘cute’ e a palavra ‘prose’. Assim ‘I/ will prose’ se refere ao cão e ‘cute you’ se refere ao rato. Somando-se a isso os sons aproximados muitas vezes reverberam os diferentes campos de força.
Há também um artigo acadêmico pertinente que traz uma nova leitura a esse conflito[10]. Ele relaciona o nome ‘Fury’ às erínias gregas, que são chamadas de fúrias na mitologia romana. São personificações da vingança que vem para punir os mortais, evocando o conflito representado por Ésquilo na peça Eumênides, quando Orestes é julgado pela morte da mãe num tribunal em que é defendido por Apolo e acusado pelas erínias diante de um júri humano. No julgamento, Atena deposita o voto que absolve Orestes, apaziguando as fúrias e trazendo a ideia de substituição da lei do sangue pela lei do tribunal dos homens. Entre as descrições físicas dessas divindades já apresentadas estão cabelos de serpentes e cabeças de cachorro. O fato de Lewis Carroll ter domínio do grego e conhecimento da mitologia greco-romana oferece credibilidade a essa leitura como sendo outra peça de um quebra cabeça sugestivo arquitetado pelo literato matemático. 
Temos, portanto no poema um entrelaçamento variado de signos com sons, formas e sentidos que se ecoam, se cruzam, se alongam e se cortam. É esse entrelaçamento que Augusto vai procurar ‘transcriar’ para o Português.  

                                                    O POEMA-CAUDA
Augusto: O que quis dizer é que não traduzo por encomenda, nem tenho interesse em projetos de obras completas, mania de alguns editores. Está fora da minha ideologia, que é, como costuma dizer o Haroldo, que comunga das mesmas ideias, a tradução intensiva e não extensiva. Traduzo só os que julgo conseguir recriar com análoga intensidade poética em português. Assim, não faz sentido para mim traduzir todo o Finnegans Wake (Joyce) ou toda A Divina Comédia (Dante). Me interessam as pedras-de-toque. Os momentos mágicos, as leituras privilegiadas.[11]

‘Pedras de toque’ foi a expressão usada por Augusto no trecho da entrevista acima citada para se referir às suas escolhas tradutórias. É o caso de Poema-Cauda. Vislumbrando as imagens da página dois, já fica patente como sua tradução procurou reproduzir ‘paramorficamente’ o desenho visual da cauda. E isso se aplica também quando colocamos a tradução dele em forma tradicional. Verificamos que, assim como no original, Augusto criou versos que podem ser distribuídos em quatro estrofes do tipo ‘tail rhyme’, apesar de desconhecer essa descoberta posterior a sua tradução.

Fury said to a mouse, 
That he met in the house.
‘Let us both go to law: I will prosecute you. –

Come I’ll take no denial:
We must have the trial,
For really this morning I’ve nothing to do.

Said the mouse to the cur, 
‘Such a trial, dear sir,
with no jury or judge, would be wasting our breath.

I’ll be judge, I’ll be jury,
Said cunning old Fury
‘I’ll try the whole cause and condemn you to death.’
Disse o gato pro rato:                           
Façamos um trato.                                
Perante o tribunal eu te denunciarei.   
                                                  
Que a justiça se faça.                              
Vem deixa de negaça,                              
É preciso afinal que cumpramos a lei. 
                                                      
Disse o rato pro gato:                                
-Um julgamento tal,                                 
sem juiz, nem jurado, seria um disparate.
                                                      
O juiz e o jurado                                      
Serei eu, disse o gato.                              
E tu, rato, réu nato, eu condeno a meu prato.                                                               

Uma qualidade importante discutida no ‘The Mouse’s Tale’ foi a presença de quatro camadas de trocadilhos relacionados a palavra ‘tail’.  Augusto consegue reconstruir a reafirmação da ideia de ‘cauda’ por três vezes: 1) na forma visual do poema, 2) na forma poética ‘tail rhyme’ adotada, que poderíamos chamar de rima-rabo e 3) na aparência de rato que tem a estrutura convencional da estrofe com dois versos curtos como corpo e um verso mais alongado como cauda. Porém, parece não ter sido possível fazer o quarto trocadilho ao aproximar algo correspondente a ‘tale’ (história/relato/descrição/narração/conto/poema) a uma palavra correspondente a ‘tail’ (cauda/rabo), já que seus significantes não se parecem. Para ‘reequacionar os constituintes identificados de acordo com critérios de relevância’ de que fala Jakobson, Augusto vale-se da relação metonímica que existe entre cauda e rato, podendo considerar a parte como representante do todo. Essa grande sacada é desenvolvida na paronomásia (ou trocadilho) estabelecida na relação de ‘rato’ e ‘prato’, não por acaso estando elas posicionadas uma no início do poema e outra no fim. Elas são mais do que uma rima, uma contém a outra, identificando-as semanticamente e esteticamente. Também ‘rato’ está contido em ‘trato’, que é a proposta de ida ao tribunal, processo que transformará o rato em prato. Vemos então uma tripla expressão da ideia de rato, representadas por sua cauda, e uma tripla paronomásia com o significante ‘rato’.  Outra aproximação interessante que podemos fazer de significantes contendo a palavra ‘rato’ seria fundir a expressão qualificadora dada ao rato no último verso: réu nato.  
Uma modificação intrigante se dá na escolha do antagonista. Já que o Rato havia prometido explicar o medo que tinha de cachorros e gatos e, no original que acabou por ser publicado, exemplifica o medo que sente por apenas um desses animais, fica implícito que seria indiferente se ele tivesse escolhido falar do gato ao invés do cachorro. Essa indiferença semântica parece ser o que levou Augusto a escolher o gato como o antagonista, o que traz ganhos sonoros significativos, já que gato e rato diferenciam-se apenas pela primeira letra. Logo no início do poema visual, o gato está exatamente acima do rato, expressando sua superioridade. A ele serão relacionados os substantivos ‘tribunal’, ‘justiça’, ‘lei’, ‘julgamento’, ‘juiz’, ‘jurado’ e as ideias de ‘denúncia’ do verbo utilizado ‘denunciarei’, e de condenação do verbo ‘condeno’. Já o rato está ligado a ‘réu nato’, ‘prato’, como já dito, além das palavras ‘negaça’ e ‘disparate’. Essa última também tendo uma carga semântica proveitosa do ponto de vista metalinguístico, já que disparate é contrassenso, algo destituído de razão, exatamente o que faz a literatura nonsense de Carroll. No poema visual o corte da palavra ‘de-nuncia-rei’ isola o vocábulo ‘rei’ que obviamente se cola ao antagonista. Isso acontece novamente no corte da palavra ‘se-rei’ no penúltimo verso. Outro efeito interessante na disposição tipográfica foi que a palavra ‘rato’ dentro de ‘pra-to’ também aparece cortada no fim, podendo expressar o rato já cortado ao meio pelos dentes do felino.  Infelizmente a palavra ‘Fury’ com todas as alusões gregas que contém se perdeu nesta tradução.
Olhando mais minuciosamente a recriação formal de Augusto percebe-se que sua reconstituição do esquema de rimas e ritmo se assemelha quase que totalmente ao original. As rimas de Augusto são perfeitas nas duas primeiras estrofes e imperfeitas nas duas últimas quando ‘jurado’ rima com ‘gato’ e ‘disparate’ rima com ‘prato’. Há um esquema diferente de rimas somente no segundo verso da terceira estrofe (um julgamento tal), que, ao invés de rimar ‘tal’ com o verso que o precede, estabelece relação sonora com duas palavras internas no terceiro verso das duas primeiras estrofes nas palavras ‘tribunal’ e ‘afinal’.  Essa relação não existe no ‘The Mouse’s Tale’ e, portanto, traria um efeito adicional que compensaria a perda da regularidade naquele ponto. Esse recurso compensatório também aparece em vários outros momentos. Houve ganho de rimas internas nos primeiros versos das três primeiras estrofes, quando temos gato/rato, justiça/faça e no último verso do poema: E tu rato, réu nato, eu condeno a meu prato. Abundam as aliterações em Lewis que aparecem em ‘s’ (said, such, sir), em ‘j’ (jury, judge), e em ‘c’ (cunning, cause, condemn). Também Augusto cria uma profusão de aliterações em ‘t’ (trato, tribunal), ‘s’ (sem, seria, serei), em ‘j’(justiça, julgamento, juiz, jurado) ou em ‘r’(rato, réu). Assonâncias também estão presentes em ambos os poemas. 
Quanto ao ritmo, o poema original tem versos regularmente anapésticos binários de seis sílabas nos versos mais curtos e quaternários de doze sílabas nos versos mais longos, com exceção das estrofes pares que possuem o segundo e terceiro versos começando com um jambo, ficando assim com cinco e onze sílabas. O Poema-Cauda tem somente três momentos que quebram essa regularidade no ritmo, mantendo o anapesto ou jambo em todo o resto. Essa fidelidade à forma não é comum em outras traduções deste poema, mesmo quando feitas por poetas, como pode-se verificar comparando a tradução de Augusto às de Sebastião Uchoa Leite (São Paulo: Editora 34, 2016)[12] ou de Maria Luiza X. De A. Borges (Zahar, 2013)12b.
Para finalizar, tanto o poema de Carroll como os parâmetros tradutórios aqui adotados por Augusto de Campos na sua recriação e sistematizados pelo irmão Haroldo têm uma estreita relação com a estética concretista de poesia que eles praticaram e defenderam em artigos e manifestos juntamente com Décio Pignatari. Augusto, em 1955[13], diz “... os poemas concretos caracterizar-se-iam por uma estruturação ótico-sonora irreversível e funcional e, por assim dizer, geradora da ideia, criando uma entidade todo-dinâmica, “verbivocovisual” – é o termo de Joyce – de palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema.”. O Poema-cauda, assim como o original ‘The Mouse’s Tale’ são ricos exemplos de objetos ‘verbivocovisuais’, que dinamicamente veiculam a narração poética falada do Rato (sonora), a cauda escrita-visual (ótica) impressa na imaginação de Alice, ambas materializadas no papel do livro pela impressão editorial conduzida pelo autor e à disposição do leitor. Apesar da tradução não ter sido publicada juntamente com o restante da fábula, seus leitores, de maneira geral, conhecem o seu contexto.  Ainda assim, essa ‘pedra de toque’ tem autonomia para manter suas qualidades materiais e imateriais fora dele, tanto que foi por duas vezes transformada em música se libertando até de sua dimensão espacial no papel, adquirindo outras dimensões sonoras.

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[1] CARROLL, Lewis. The Annotated Alice. Alice’s Adventures in Wonderland and Through the Looking Glass. With illustrations by John Tenniel; updated, with an introduction and notes by Martin Gardner. New York: Wings Books, 1993. p.51.
[2] CAVALCANTE, Péricles & CARROLL, Lewis, na versão de CAMPOS, Augusto. Poema-Cauda in Mil e Uma. Som Livre, 1996. Foi lançada como parte da trilha original do filme Mil e Uma de Suzana Moraes, interpretada por Arrigo Barnabé e Péricles Cavalcante. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=JcWzGcQ0j60 . Visualizado em 14 de janeiro de 2017. (ponto: 5’49’’).
[3] CAMPOS, Cid & CARROLL, Lewis, na versão de CAMPOS, Augusto.  Poema-Cauda in Criança Crionça. Selo Sesc, 2009. Disponível em http://www.cidcampos.com.br/sec_discografia_view.php?id=36. Visualizado em 14 de janeiro de 2017. (faixa 6).
[4] CAMPOS, Haroldo. ‘Da tradução como criação e como crítica’ in TÁPIA & NÓBREGA, Haroldo de Campos – Transcriação, organização Marcelo Tápia, Thelma Médici Nóbrega. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. 
[5]  CAMPOS, H. “Da Transcriação: Poética e Semiótica da Operação Tradutora” in TÁPIA & NÓBREGA, 2013. p 93.
[6] Martin Gardner afirma: “The mouse’s tale is perhaps the best-known example in English of emblematic, or figured verse: poems printed in such a way that they resemble something related to the subject matter. The affectation goes back to the Ancient Greece”.  In CARROLL: 1993 (p 50). 

[7] Esse estudo é também comentado por Gardner na edição de 1993 e foi também noticiado no artigo: Tale in Tail(s): A Study Worthy of Alice's Friends. In The New York Times. Publicado em 1o Maio, 1991. Disponível em http://www.nytimes.com/1991/05/01/books/tale-in-tail-s-a-study-worthy-of-alice-s-friends.html . Visualizado em 15/01/2017.

[8] “Tail rhymealso called tailed rhyme, a verse form in which rhymed lines such as couplets or triplets are followed by a tail—a line of different (usually shorter) length that does not rhyme with the couplet or triplet. In a tail-rhyme stanza (also called a tail-rhymed stanza), the tails rhyme with each other.” In Verbete da Enciclopédia Britânica Virtual, escrito pelos editores e atualizado em 1999. Disponível em https://global.britannica.com/art/tail-rhyme . Visualizado em 16/01/2017.

[9] Weil, Cornelia (Fall 1991). "Mouse Tail". Messenger. University of Delaware. 1 (1): 47. Disponível em  http://www1.udel.edu/PR/Messenger/92/1/49.html . Visualizado em 15/01/2017.
[10] SOTO, Fernando J. in The Mouse’s Long and Sad Tale: Lewis Carroll’s Tricky Use of Aeschylus and Other Greek Sources. Libri et liberi : journal of research on children's literature and culture,  Disponível em: http://hrcak.srce.hr/index.php?show=clanak&id_clanak_jezik=227091&lang=en . Visualizado em 15/01/2017.
[11] Augusto fala em entrevista a VASCONCELOS, Ana Lúcia. in Augusto de Campos. A poesia que faço é a de um artesão. VITABREVE Revista Digital de Arte e Cultura. Disponível em http://vitabreve.com/artigo/57// . Visualizada em 15/01/2017.
[12] 
  12b  
 
[13] CAMPOS, Augusto. Poesia Concreta in CAMPOS, PIGNATARI & CAMPOS. Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006. pp 55-56