domingo, 12 de agosto de 2007

Zéfiro

Texto de Cecilia Furquim
Ilustrações (da Internet): Francesco Sgroi
Para Gabriela













Minha mãe me disse
que na velha Grécia
tinha um tal de Zéfiro,
que levava gente
suave, mansinho,
de um lado pro outro

Nos seus longos braços,
seu colo de vento,
você nem sentia:
já tinha chegado






















Eu bem que pensei:
será que é possível
chamar esse Zé
pras bandas de cá?

Na cama, de noite,
encostei o corpo
no meu travesseiro
e contei pra ele
meu louco desejo:































Seu Zéfiro, ouve:
pega uma carona
em boa corrente
e vem pro Brasil.

Me leva pro alto,
eu quero planar
no imenso do céu,
poder ver a lua
e dar oi pro sol,
escapar da chuva
desviar dos montes,
depois pegar onda
na estrela cadente.

























No dia seguinte,
esperei pra valer,
mas ele não veio
aqui me pegar.

Pensei que talvez
desejo de um só
não fosse bastante,
tão longa viagem
não vai compensar.
























.
.
.
.
Liguei pra vovó,
e disse pra ela
também desejar:

Seu Zéfiro leva,
me leva pra era
dos meus ancestrais.
Me mostra a fazenda
e a grande família,
unida na mesa,
contando sua lida.
























.
.
.
.
Me põe já num galho,
com a mão lotada
de jabuticaba.

Depois, com a moçada
treinando a paquera
no footing da praça.

E em hora escura,
me põe a girar
no centro da pista
do baile de gala.
























Chamei a babá
e disse pra ela
também desejar:

Seu Zéfiro leva,
me leva pra terra,
e traz o meu homem,
o filho da Dita,
meu Zé violeiro.

Vem Zéfiro, zela
pela nossa sorte,
pra terra nos dá
tudo que se come.

Sussurra baixinho
meu tanto de amor,
traz ele pra junto,
pra gente gozá
o sabor da vida
e o som da viola.

























.
.
.
Depois à noitinha
falei pro papai
também desejar:

Seu Zéfiro leva,
me leva pro palco,
me tira da roda
de fazer dinheiro

Coloca minha voz
num bom microfone,
e todos amigos,
ligados, curtindo
a banda de rock.

Me deita na rede
no fim de semana,
rezando umas graças
e fazendo troças
pras saias da casa.























.
.
.
.
.
Faltava então
falar com a mamãe.
Agora é sua vez:
com o seu desejo
ele não tem jeito
de negar a todos:

Seu Zéfiro, leva
me leva pra um ponto
um ponto de luz
em fala ou em letra
que sirva pro povo
melhor entender
o seu desnorteio
e ajude a tomar
um caminho novo

Seu Zéfiro, lança
a tua aragem
em minha linguagem
e eu possa com isso
formar uma trança
que enlace os sentidos
nos fios da razão.
















E assim esperamos
o vento do oeste
soprar nossa sede,
suave, mansinho.

Suave, mansinho,
não dá pra contar
o tempo do Zéfiro.

Em colo de vento
a gente nem sente
o seu movimento.

Balança de um jeito
gentil, delicado,
eu mal me dei conta
que fui transportado.












FIM

sábado, 11 de agosto de 2007

nós

































Cecilia Furquim - agosto de 2007


quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O Si














“Mas quem é Narciso? Narciso é o ser ou estar que prova e aprova a si próprio. Narciso é a instância do ser ou estar que prova e aprova o próprio ser ou estar.”
Antonio Cícero

(afirmação que esclarece sua definição de ‘dança narcísica’ ao se referir ao trabalho de Hèlio Oiticica: ‘Parangolé’)


O SI
O Sicrano investiga
o provar e o aprovar-se
do Narciso

Com uma ponta de juízo
e outra de riso

Inseguro da inocência
e do sarcasmo

que se prende e aprende-se
como preço e apreço
do Sicrano condoído
e invejoso do Narciso.


Cecilia Furquim

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Sarau Periferias





















(Poema visual feito para o sarau por Cecília Furquim, utilizando imagem de Francesco Sgroi)


Dia 02/06/2007 na Casa das Rosas, às 18 horas
Apresentação de poemas, canções e dramatizações


REGISTRO DO SARAU

Apresentação:

O sarau temático que está sendo proposto agrupou um número grande de criadores da poesia, da música e do teatro; contando também com representantes da criação na prosa e na imagem.

Na casa, que representa historicamente uma arquitetura de elite, na avenida que é o centro financeiro do país, na cidade e estado mais ricos da América do Sul, no país que é.... bem... no país que é uma das periferias do mundo, do mundo de prestígio. Aqui no Brasil, analisando pelo aspecto do poder, querendo ou não, de frente, de lado ou de costas: somos todos periferia.

E para cantar o ‘ser periferia’, artistas se uniram, em sua grande maioria com o propósito, não de interpretar criadores já consagrados, mas de apresentar trabalhos próprios.

Ao público oferecemos então nosso canto. Canto dividido em cantos, multiplicado em cantos. Cantos múltiplos de 35 artistas dirigidos às múltiplas periferias: periferia da alma, da religião, do amor, do sexo; periferia da identidade, da sociedade, da cidade, da linguagem, da arte. Cantos de tantas margens, beiras, bordas, orlas, pontas, cantos. Cantos de cantos!!!





CONVIDADOS (por ordem de entrada)

1º BLOCO:

Abertura: Marcelo Tápia (poeta, músico, tradutor e professor), acompanhado de seu filho e parceiro, o músico Daniel Tápia.
Outros poetas ligados a Casa das Rosas: Tom Carvalho. Lúcia Hiratsuka, Américo Bittar, Maria Luiza Palhas, Cecília Marinho (com Nice Pequena, Wesley Vieira e Roberto Crimber, do grupo Religare).

2º BLOCO

Serão apresentados trechos da peça ‘Mutatis’ pelo grupo Religare, grupo que acolhe ex-internos da Febem, num trabalho intenso e sério de educação e reintegração através da arte. Dirigida por Valéria Di Pietro, e encenada pelos atores: Peterson Xavier, Wesley Vieira, Fran de Lima, Nice Pequena, Willa Melo, Antonio Marcos, Marcely Ancelme, Bruna Veloso e Flavia Felix. A peça foi escrita por Peterson Xavier e Danilo Fernandes, e inclui canções de Edvaldo Santana.

3º BLOCO

Beto Furquim (músico e compositor); Beatriz di Giorgi (poeta); Fábio Don (músico); Deborah Rebello (poeta); Monahyr Campos e Tiely Queen (músicos); Simone Paulino (escritora); Éder Melgar e Márcia Casseb (músicos); Émerson Caperbat (ator); ‘Tupinambá e seus Turebas’ (banda de Funk Rock).

Fotografia e montagem: Rita Catunda
Poema visual: Beto Furquim

TRABALHOS

Seguem, abaixo, vários dos trabalhos apresentados (por ordem de entrada):

Rita Catunda























- As montagens e fotos de Rita Catunda foram feitas especialmente para o Sarau e foram expostas na entrada da Casa das Rosas.



* * *

Marcelo Tápia

o reto


para a vida ser reta
é preciso abandonar
todas as curvas


para a vida
ser reta é preciso abandonar
todas as curvas


para a vida ser reta é preciso abandonar
todas as curvas


para a vida ser reta é preciso abandonar todas as curvas




segunda classe


de manhã
média com pão e manteiga
no almoço
dieta de quantia média
o dia todo
média com o chefe
pra não ficar
abaixo da média dos ordenados
no estacionamento
taxa de carro médio
meio tanque cheio
a volta pra casa
em velocidade média
rádio ligado
em ondas médias
na chegada
metade uísque metade água
média mensal do filho na escola
a cara metade fala de ofertas
com 50% de abatimento
novela o divertimento
(gosta daquela entre a das 6 e a das 8)
depois do banho morno
panos quentes nos desentendimentos
um coito de meia hora
pau tamanho médio
meio duro, gozo mediano
deitado de meias na metade da cama
o jornal da tv: mass-media
pra ficar por dentro da vida



Marcelo Tápia é poeta, músico, tradutor e professor do ‘curso de criação e tradução de poesia’ na Casa das Rosas. Publicou, entre outros, os livros Primitipo (1982), O bagatelista (1985), Rótulo (1990), Livro aberto (1992), Pedra volátil (1996) e o volume de tradução A forja – alguma poesia irlandesa (2003). É integrante do grupo de música irlandesa Irish Dreams com dois Cds gravados, Irish Dreams, 2000, e Whiskey in the Jar, 2002. Tem se destacado desde 1987 na organização das comemorações do Bloomsday paulistano, homenagem anual ao escritor irlandês James Joyce. Colabora para uma coluna na revista cronópios (www.cronopios.com.br ) e publica textos literários na revista Mnemozine.


* * *

Lúcia Hiratsuka



Traduções de Haikais


Lúcia Hiratsuka é poeta, tradutora e ilustradora. No sarau leu traduções suas de haikais. Alguns de seus haikais, acompanhados de ilustrações utilizando a técnica de sumiê, podem ser apreciados na revista cronópios, no link:
Depois de se formar em Artes Plásticas, Lúcia pesquisou sobre os livros com imagens na Universidade de Educação de Fukuoka no Japão (1988-1989). Recebeu alguns prêmios nessa área: APCA’95, pela coletânea de Contos e Lendas do Japão, menção “Altamente Recomendável” da FNLIJ, 3o lugar no JABUTI 2006 (categoria ilustrações) pelo livro “Contos da Montanha”. Site: http://www.luciahiratsuka.com.br/ E-mail: l.kioko@terra.com.br

* * *

ABittar

Poema Recorrente

Assalta-me
De repente
Esse poema
Recorrente
Sobre a selva de pedra
Concreto e asfalto
Um poema
Que nunca termina
E nunca terminará
Volta e meia
Ele volta
Pra me perturbar
Então começo a escrever
Pra não me esquecer
Do que quero lembrar
É fácil falar
São Paulo
Não dorme
Nem pode parar
Dizem que aqui só tem
Tristeza, pobreza e miséria.
O que não é verdade
Todo mundo
Tem pressa
Vive num corre-corre
Atrás de emprego e trabalho
Porque é dura
A competição
São mais de dois milhões
De desempregados
Quase todos
Na mesma situação
Todo mundo está
Vendendo o almoço
Pra comprar o jantar
Você ri, mas, não tem graça não,
A realidade é bem pior
Do que se pode imaginar
Só quem
Passou fome sabe
O que é passar fome
Não adianta tomar água
Porque água
Não mata a fome
Água só mata a sede
Mas, São Paulo.
Não é só isso, não.
São Paulo também tem
Show e diversão
Parques espalhados
Pela cidade
Com várias atividades
Tudo de graça
É só procurar
Quem procurar
Há de encontrar
Com um pouco de sorte
E muita disposição
Ainda podemos
Nos darmos bem
Nesta cidade
Que é o coração
Da nação

Já passei frio
Já passei fome
Na cidade
Que não dorme
Já vi o contraste
Do bem e do mal
Já sei o que é
Ficar engarrafado
Numa enchente
Na Marginal
São Paulo é
Um pouco assim
Amor e ódio
Primavera e verão
Outono e inverno
Acontecem num só dia
Em qualquer estação
A pressa, o corre-corre.
Mexem com a emoção
Tudo é muito
Tudo é demais
São Paulo
É o mundo todo
Todo o mundo
Está representado
Aqui numa só cidade
São Paulo é bem assim
Não fale mal
De São Paulo
Perto de mim.

Mesmo Estando parado
Olhando pro nada
De algum lugar
Da Avenida paulista
Na escadaria cartão postal
Que tem a Antena mais alta
Que tem a sirene
Mais estridente
Que anuncia o meio dia
Todos os dias
Faça chuva ou faça sol
Parado espero
Agora, o farol abrir.
Pra seguir
Ir até o metrô
Pegar o trem
Saltar do trem
Ir mais além
Do terminal
Da Madalena
Não a Santa
Nem a outra
A Vila Madalena
E da Vila
A Lapa
A casa
O Apê
A Preta
O rango
O cigarro
O banho
A cama
O sono
O sonho
O acordar
E recomeçar
Tudo de novo outra vez
E outra vez...

Augusta
São João
Ipiranga
Consolação.
São Paulo não é só
Isso. Não.
Viaduto do Chá
Anhangabaú
Rua Direita
Praça Ramos
São Paulo não é só
Isso não.
Oscar Freire
Faria Lima
Vila Madalena
Avenida Paulista
Perdizes
Jardim Europa
Augusta
Cidade Jardim
São Paulo não é só
Isso. Não.
Freguesia do Ó
Brasilândia
Itaquera
Pirituba
São Miguel
Vila Tiradentes
Paraisopolis
São Paulo não é só
Isso não meu irmão.
Osasco
Guarulhos
Santo Amaro
Largo da Batata
Praça do Pombo
Alphaville
Carapicuíba
Ipiranga
Monumento
Ibirapuera
São Paulo
Não é só isso não
É mais...
É muito mais...
Já pensou em muito?
Põe um monte
Em cima desse muito
E ainda é muito mais...
Frio
Fome
Pobreza
Muito mais
Cada vez
Chegam mais
Bocas
Pra alimentar
Falar, reclamar,
Gritar,
Assim não dá!
Futebol,
Alegria do povo.
Carnaval,
Festa popular.
São Paulo,
Terra boa.
Terra da Garoa,
Água boa.
Enchente
Engarrafamento
Calor
Poluição
Confusão
Lixão.
Crianças carentes
Catando o pão
No lixo
Sabe...
Não queremos
Esmola
Queremos
Escola
Oportunidades
Iguais
Somos
Humanos
Seres
Humanos
Não somos
Invisíveis
Não adianta
Virar a cara
Fingir não ver
Não vai resolver
Somos um problema, sim.
Que tem solução.
Pare...
Pense...
Reflita...
Antes que...
A massa aflita.
Faça da mão
Uma arma
E da vida
Uma merda
Bem maior,
Maior do que já é!

Na cidade
Que não dorme
E não pode parar
Sentimos fome
Passamos frio
Conhecemos:-
Pobreza, tristeza, miséria.
Com pressa
No corre-corre
As ruas estão lotadas
Transito engarrafado
Calor, poluição, suor.
Calçadas apinhadas de gente
E mais, sempre chegam mais.
De todos os lados e lugares
Possíveis e imagináveis
De onde essa gente vem?
Todas as raças
A miscigenação
Todos os credos
Credo que confusão
Tudo é muito
Tudo é grande
Tudo é demais
E muito mais
Vem chegando
Bocas famintas
Para alimentar,
Falar, reclamar.
Gritar...Vai Vai
Rosas de ouro
Camisa verde
X-9
Leandro
Gaviões da Fiel
Nenê de Vila Matilde
Leandro
E nos feito bobos
Enquanto a garoa cai
A terra é boa
Dá de tudo
Mas não dá nada
Pois, só tem.
Asfalto e concreto
Plantados no chão
Barraco arrastado
Na enxurrada.
Colheita perdida
Safra perdida
Campo alagado
Bóia-fria
Sem trabalho
Sem cana
Para cortar
Sem café
Para colher
O campo se esvazia
E em outros campos
A bola rola
Morumbi
Canindé
Pacaembu
Estádios
Viram arenas
E os fiéis
Fiel
Independente
Mancha
Peixe
Macaca
Porco
Digladiam-se
Gritam gol!
Extravasando
Seus traumas
Suas neuras
Suas taras
Limpando a alma
Defrontam-se
Confrontam-se
Matam e morrem
Por nada
Por ninguém
Sem ganhar nada
Apenas o grito de:-
C a m p e ã o
Quando pensamos
Que tudo ia mudar
Pois a esperança
Venceu o medo
Quimera, sonho, utopia.
A esperança desabou
Durou tão pouco
E se acabou
O medo voltou
São Paulo não pode parar
São Paulo
Terra boa,
Nem garoa
Aqui tem mais
Mas tem poluição
No Pinheiros
E no Tietê
Tem falta dágua
Mas, assim mesmo.
Ainda tem
Um povo trabalhador
Um povo de bom coração
Porque se não fosse
Colocaria de vez
Uma arma na mão
E só pra comemorar
Qualquer desgraça
Porque é o que
Mais tem
Fazia uma revolução.
Só para comemorar...
Só pra mostrar
Pra essa nação
Que tem um povo bom
Mas disposto a tudo
Pra fazer desse País
Uma grande Nação

ABittar, Poeta dos grilos, define-se como poeta popular. Publicou poemas no livro ‘Antologia de Escritas’ (no 3) em Portugal, 2006. Seus trabalhos podem ser encontrados no site: http://bittarpoetadosgrilos.weblogger.com.br





* * *

Maria Luiza Palhas











uso indevido


hora do rush

calçada apinhada
pontos de ônibus
driblam
pontas de estoque
pingos de leite
adoçam
pingos de chuva


FREADA BRUSCA
susto
estrondo de guerra
ricochetes de latas e lutos
viscosidades que se misturam


a arma do crime
sai em disparada

12mai07




pelúcias



falta que faz
a vida que era
da chance
da casa sem tranca
da conta sem mora
dos contos nos cantos


falta que fez
a vida que vem
sem norte
só cortes
só dores
balaços
horrores


nem brinque


12mai07


lágrimas condensadas

“Pudim de Pão”, Asta Vanzodas


quanto doce já fiz
em meio à dor
quanta carne cortei
cheia de angústia
quanta fronha dobrei
chorando a cântaros
quanto ferro passei
a ferro e fogo


ouvi no rádio que
o amor é o melhor tempero

tem peito, essa gente
tem peito


24mar07




jardim perifa

só vim aqui pra dizê

eu tive 4 filho
3 que eu pari e o jorge,
que vivia lá em casa

um foi pro estado zunido
entregá essas coisa de delíver
um dia encheram ele de pancada disseram
só recebi um relógio quebrado

outro foi de bala perdida
tava trabalhano
como é que uma coisinha daquela
arrebenta com a cara de um
beijá aquela massa cor de sangue
só mãe pra tê estômago

nem bem parei de chorá
e vejo o otro escondendo um pacotinho
é do jorge mãe
mamou no meu peito dormiu no meu colo não podia me vê
que se agarrava na minha saia

jorge são jorge
virou a cabeça virou justiceiro virou traficante

forçô meu menino
a escondê muamba

sou mansa sou calma mas tudo tem limite peguei
joguei tudo no vaso
duas descarga
meu filho: tô morto
que morto que nada
então não valeu os banho
que dei
feijão de são benedito
cada fome uma concha
então não valeu
as história
os cuidado tô morto num dô dois dia
dois dia
entra 3 capuzado
bestêra conheço eles tudo
o jorge fuziu eu pulo na frente me voa no chão
saco imprestávi
lixo nojento

então esse foi de bala achada
ele nem pediu nem rezou
ficava me olhando
do caxão
com jeito de filho
com jeito de perdão

arrebentei o vaso
a machado custei tanto pra ter e não serviu pra nada


só vim aqui pra dizê
comprei otro
rosa nem gosto dessa cor

também comprei uma arma até que é fácil
robá um pacote

mandei recado
tô aqui sentada esperano
meu coração escuta mais
que meu zovido

ele entra
eu viro o pacote
e dô a descarga


só vim aqui pra dizê
já tô chegano meus filho

27mai07





- Maria Luiza Palhas é tradutora, dramaturga e poeta. Tem incursões na Dramaturgia com ênfase na chamada Literatura de Audioficção (textos dramatúrgicos roteirizados para suporte de áudio); traduções poéticas e poemas publicados no site ‘Cronópios’. Seu primeiro livro de poesia ‘Rompantes’ está em fase de revisão.


* O uso que os seus poemas fazem do espaço não pode ser reconstituído nesse blog.


* * *

Cecilia Furquim e Grupo Religare









































- Cecília Furquim é educadora, poeta e tradutora. No sarau apresentou seus poemas 'Íris', 'Pelo sim, pelo Cão', ‘Rosarruda’ e ‘Romper da Missa’, já registrados nesse blog. O primeiro está no grupo de 'poemas esparsos' e os demais no conjunto de poemas 'Colar de Contos'. Eles foram dramatizados no sarau pela autora e os atores do Grupo Religare: Wesley Vieira, Nice Pequena e Roberto Crimber.


* * *







Grupo Religare

































TRECHO DA MONTAGEM – ‘MUTATIS’




DO PONTO DE CULTURA DO RELIGARE
POEMAS E COREOGRAFIAS

Eu tenho um sonho, uma meta a seguir! Sonho em um dia ver a paz, a alegria, a vida, a perseverança, ver tudo de bom que o ser humano prega, mas não cumpre. Não quero ver mães chorando e jovens morrendo, não quero ver o moleque pedindo esmola no farol, nem o mendigo que perdeu o caráter, pelas circunstancias em que vive. Não quero mais ver o descaso com os aposentados, nem a tia que pela falta de emprego vende droga na favela, não quero mais ver as ruas banhadas de sangue, nem a criança inocente morrendo no assalto na troca de tiros.
Não quero mais ver aquela cena: Armas sendo engatilhadas, barulho de carros derrapando, vidros estilhaçados, tiros, gritos, choro, sangue, dor... E por que? Pelo descaso, a falta de oportunidade,e de infra-estrutura da periferia, culpa do modo de vida que o povo se acostumou a levar e culpa de nós mesmos, pois se nos ajudarmos, se nos unirmos, quem sacará as armas?
Meu sonho é ver informação, conscientização, cultura e arte, na vida de cada cidadão brasileiro. O caminho para meu sonho? É o caminho, da escuridão para a luz... O caminho para confundir os sábios que se dizem sábios, pois se fossem sábios, saberiam que não se deve julgar...
Sonho em ver um dia, a humanidade tirando sua máscara, e dando o máximo de si mesmo.
Eu vivenciei o crime, as drogas,a maldade, a morte. Quero viver coisas novas. O meu crime, será lutar,contra as estatísticas. A droga que vou vender, será o sorriso no rosto de cada criança. Minha maldade, será convertida em alegria, e a morte será vencida pela vida em minha vida...
Não sou exemplo, só quero ter coragem para que meu sonho mude a minha vida e a de muitos...
Eu tenho a família, tenho os parceiros, e tenho fé.
A minha paz é o resultado da guerra, guerra contra a maldade e a insanidade.
Eu sonho... Eu sonho em ser palhaço! Sou mais um palhaço triste, que pretende sorrir, representar e viver...
Meu nome é... (TIRAM A MÁSCARA E DIZEM MUITOS NOMES)
AUTOR – DANILO FERNANDES

A noite acabou. Não somos nada além do que somos. Todos os desejos saem de cena, para dar lugar à pura essência do ser humano, para dar lugar apenas ao que existe em nós desde que nascemos, mas quando chega o dia o cotidiano que nos corrói, invade nosso ser, as injustiças nos chocam, as horas nos sufocam e tudo, tudo o que o ser humano sonha se desfaz. Mas, para alguns, o sonho não se apaga e mesmo em meio ao dia, fortes como rocha, permanecem de pé.
Pessoas assim, são as imprescindíveis, pois lutam uma vida toda, e se realizam. Poucos imprescindíveis ainda resistem, pois a maioria, se acostumou com o dia, e se esqueceu do sonho que sonhou durante a noite.
AUTOR DANILO FERNANDES


O que aconteceu conosco? Nos acostumamos com a desigualdade?
Pensem, reflitam nessas humildes palavras, pois se o ser humano não refletir, nunca mais veremos o brilho da noite.
Que fazer quando tudo parece perdido?
Que fazer quando desaparece a esperança?
Como lutar se já não tem força? Como escapar das armadilhas do mundo?
Porque culpar a vida, se a vida é tão bela?
Porque preferir aceitar as mentiras? Será que é pior procurar a verdade? Será que esquecemos o que é a justiça?
Prefiro continuar acreditando nos sonhos, acreditar que ainda existe saída. Difícil mesmo é continuar como estamos: miséria, fome, crime, castigo, corações que não batem mais, sonhos que vão embora antes da hora, crianças deixadas pra trás.
É preciso fazer algo, mas o que?Sei que existe saída, e encontrá-la não é difícil. Todos temos consciência, todos temos coração. Usar a consciência e pensar com o coração.
Temos a fórmula, temos os ingredientes, agora, só é preciso saber como utilizar tudo isso. E para conseguir usar esta formula é preciso atitude. Quando isso for possível, não perguntaremos mais:
O que fazer?
AUTOR PETERSON XAVIER

Tem gente por aí vivendo que nem bicho
Fuçando comida na lata do lixo
Tem gente por aí vivendo que nem bicho
Fuçando comida na lata do lixo
Irmã gêmea da loucura
Dos gritos na noite escura
É gente dormindo debaixo do viaduto
E comendo a parte mais podre do fruto
É gente que nem parece que é gente
Mas que a gente sabe que é gente
É gente que nem parece que é gente
Mas que a gente sabe que é gente
Tem gente por aí vivendo que nem gente
Guardando seu ouro a unha e dente
Tem gente por aí vivendo que nem gente
Guardando seu ouro a unha e dente
Trancando as portas sem saber que na rua
Sangra exposta a ferida sua
É gente engordando por cima do Fruto
E atirando a parte mais podre no lixo no lixo
É gente que até parece que é gente
Mas que a gente sabe que é bicho
É gente que até parece que é gente
Mas que a gente sabe que é bicho
AUTOR EDVALDO SANTANA

Somos aqueles que acreditamos e lutamos por um ideal, e sem dúvida somos vencedores.
Sabemos que as batalhas da vida são muito difíceis, mas mesmo assim continuamos sonhando.
E graças a esses sonhos nos tornamos cada vez mais fortes para enfrentar essas batalhas e essas batalhas nos dão a oportunidade de acreditar nos nossos sonhos!
AUTOR PETERSON XAVIER

Pobre país, pacato, pacífico, perdido pela podridão do poder, por políticos passivos.
Política, policia, palácio, palanque...Pura palhaçada.
Presos pobres, pancada, porrada, pólvora, pânico, pescoços pisados, peito palpitando pouco perfurado pelos patifes.
Pelotões, piquetes! Pra quê? Pra proteger? Pra prender!
Prostitutas! Preço pago? Pouco.
Parem, pensem! Por que permanecem políticos pérfidos possuindo poder? Prepotentes, preconceituosos.
Pergunto: Por que permitimos? Parecemos pelegos. Precisamos parar. Protestar, pois parece piada.
Perecemos pouco a pouco. Procuremos panacéia. Precisamos pelejar, permanecer poeta.
Paralisar poderosos, palmatória para pilantras, poder para o povo pobre. Procuremos a paz.
Precisamos permanecer passeando pela penumbra?
Não!!!
AUTOR PETERSON XAVIER

Como o mundo mudou. Não vejo mais as crianças sujas na praça da sé.
Álcool e drogas parecem ter desaparecido.
Isso é estranho!
Policiais tratando as pessoas com educação, Políticos honestos, Onde está toda aquela podridão?
Isso é muito estranho!
Onde estão os malabaristas do farol? O que? Em uma escola de arte? Isso está cada vez mais estranho!
Eu conheço aqueles homens sentados no “café”. São mendigos que ontem imploravam por um pedaço de pão, e hoje se fartam em um café!
Isso com certeza é estranho, mas é muito bom!
Não ouço mais o “neoforró”, o “axé music”, onde está a éguinha pocotó?
Isto está muito bom, e muito estranho!
Esperem! Ouço um som diferente! Que barulho é esse?
(Todos simultaneamente imitam o som de um despertador: pipipipi)
Ops!É meu despertador! Já é hora de acordar. Sabia que havia algo de estranho!
Estava bom demais pra ser verdade!
AUTOR PETERSON XAVIER

Agora o menino dorme, na sua postura correta
Sozinho na noite enorme, como quem dorme de forma completa
Por não ter havido outro jeito senão crescer depressa e a esmo
Na escola da rua e ter feito de si o indefeso refém de si mesmo
Por não ter havido diferença entre as coisas da vida e da morte
Foi morto com bala de polícia, mas podia ter sido de crack ou de corte
(O elenco repete o texto a seguir diversas vezes como se fizessem uma oração)
Passarinho não cantou nessa madrugada, foi um jeito que ele arrumou pra ser camarada.
AUTOR EDVALDO SANTANA

(Música. Incelença o ator/atriz que está no centro e disse o ultimo texto iniciará uma coreografia os demais cantam)

Uma incelença entrou no paraíso, adeus irmão adeus, até o dia do juízo adeus irmão adeus, até o dia do juízo

(música. O elenco caminha pelo palco e posiciona-se para ultima coreografia)

Não tenho vergonha de dizer o que sou
Fui interno da FEBEM e hoje sou um vencedor
Eu um dia errei mas estou recuperado
Não faço as mesmas coisas que fazia no passado
Sou bem diferente do que a mídia mostra
Quer saber como mudei?
Essa é a resposta
Eu fiz curso de teatro e ganhei sabedoria
Feios, Sujos e Malvados, essa é a minha companhia.
Feios, Sujos e Malvados, Feios, Sujos e Malvados, Feios, Sujos e Malvados.
Aprendi a representar e também a respeitar
Aprendi o que é certo e pretendo não errar
Hoje sou ator e também sou cantor
E nunca deixei de ser sonhador
Sou ator, sou palhaço, disso tudo um pouco faço
Sou cantor malabarista, sou feliz eu sou um artista.
Faço tudo com esforço e também com muito amor,
E tenho muito orgulho pois eu sou um vencedor.
Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados.
Vivo com a arte dentro do coração
Feios, Sujos e Malvados essa é a minha união
Vivo no teatro e no meio musical,
Hoje a minha vida é muito mais legal.
Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados.
AUTOR PETERSON XAVIER








- O grupo ‘Religare’ nasceu dentro da FEBEM/SP nas atividades de teatro. Seus integrantes participaram das várias apresentações de NUM LUGAR DE LA MANCHA – AMORES E AVENTURAS DE DOM QUIXOTE. O espetáculo ‘MUTATIS’ conta a trajetória dos jovens envolvidos no grupo desde os “tempos sombrios” (quando em medida sócio educativa) até os “Tempos de Transformação” (a partir da arte). Seus questionamentos e seus sonhos traduzidos para a linguagem do teatro são um relato de coragem que gerou uma estratégia de enfrentamento à oferta da marginalidade.





* * *

Beto Furquim



















O poema visual acima foi feito especialmente para o sarau.



Margem

Errando só no rio
Nu corpo da canoa
Os olhos no vazio
E o oco só ressoa
O múrmurio do rio

Sondaia solta um pio
E a sombra se amontoa
O peito sente frio
O braço rema à toa
A escuridão do rio

“Cê vai, ocê fica, você não volta mais” *

O mundo por um fio
Que a água desenhou
E o corpo conduziu
Até que a mão deixou
A vida pelo rio




* Citação não-literal de trecho do conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa.



- Beto Furquim é músico. Em 1993, a música ‘Margem’ recebeu o prêmio Editora Abril/USP (Projeto Nascente) de música popular, na categoria compositor, juntamente com as canções: “À beira mar”, “Estrela da manhã”, “Poço sem fundo”, “Sinuosa” e “Fio de geada”. Em 1995, o samba “À beira-mar” foi gravado no CD "Metamorfosicamente", de Marcelo Quintanilha. Em 2000, a canção “Estrela da manhã” foi cantada por Monica Salmaso, no festival da Música Brasileira, promovido pela Rede Globo. Essa interpretação foi registrada no CD com as 12 finalistas do festival, distribuído pela Som Livre e pode também ser apreciada no link do 'You tube'ao lado. Essas e outras composições podem ainda ser encontradas no seu álbum "Muito prazer", produzido por Mário Manga, à disposição no site www.myspace.com/betofurquim









* * *

Beatriz di Giorgi

UNDERGROUND


Não tape os ouvidos,
Nem os olhos.
Preste atenção
Nos movimentos
Subterrâneos
E cheios de silêncio,
Entrecortados e proibidos.
Na realidade a vida vem de dentro:
Underground.



PAREDES


Em mim conservo as paredes da casa antiga, matriz.

Paredes que guardam conversas,
Agonias de morte
E nascimentos com fórceps.

Paredes de sons silenciosos e desenhos dourados.

Paredes que escureciam
A casa antiga,
A casa demolida.

Sonho e reavivo tijolo, pintura,
Parentes que não conheci.

Construo de novo a casa antiga,
Presente no ar
E nas cantigas de ninar.


LIMITES


Centro é confusão
Periferia é definição.

Centro é expulsão
Periferia é impulso.

Centro é coração
Periferia é a flor da pele.

Centro é substantivo.
Periferia é adjetivo

Centro é estático
Periferia é movimento pleno.

Poucos são do centro
Muitos são da periferia.

Uns escondidos no Centro
Outros esparramados na periferia.

Somos todos centro e periferia
Somos todos crônica e poesia.

E em qualquer lugar sonhamos
Com a borracha que apague
Essa triste figura desenhada
Com contornos prontos e perversos.

Queremos no fundo e na forma
Pintar outra imagem mais bela
Com cores pastéis
Com dores e amores de gente inteira.


ESTORVO


Cada um com seu estorvo
Que brada feito trovão
Particular.

Estorvo é um trovão
Que anuncia tempestade,
Mas não avisa quando,
A saturação explodirá
Em líquidas lágrimas
Em vozes alteradas feito trovão.

Peguei o estorvo,
E deixei no meio da rua.

Um passante desavisado recolheu o estorvo,
Encantado que estava, virou mágico
E o estorvo virou tesouro.

Assim caminha a humanidade,
Transformando tesouro em estorvo
E estorvo em tesouros.

Arrependimentos acontecem,
Bons encontros também.


DIÁLOGO COM O DIABO


O diabo sempre quer algo de nós.
Vive a rondar
Com suas tentações,
Exigências, promessas.

Se eu tiver que dar algo ao diabo
Entrego meu passado
De presente.

Que o diabo carregue meu passado,
Os resíduos que não guardei,
Os beijos que não dei,
Aventuras que não vivi.
Que fique tudo com o diabo.

Meu presente tem passado bem.
Meu presente é memória no corpo,
Lembranças nas fotos e cartas.
O resto que o diabo use como quiser.

Me antecipo a qualquer insinuação diabólica
E o futuro me pertence
De corpo e alma.

BARBÁRIES



Barbaridades contemporâneas
Impossíveis de engolir.

Barbaridade, tecnologia e humanidade
Evoluem no mesmo passo.

Lanças cibernéticas,
Linchamentos a céu aberto
Desenham a roda da morte,
A rota da fortuna.

Escapo para minha torre
E observo, serena, o tumulto.

Engano meu: a torre é de Babel
E o papel não é de carne.



- Beatriz di Giorgi é poeta, publicou poemas no ensaio de fotografia intitulado "Choro Absoluto", na Revista Iris (Foto nº 46). Os poemas ‘Barbáries’, ‘Diálogo com o Diabo’, ‘Limites’ e ‘Paredes’, acima, foram escritos especialmente para o sarau.

* * *

Fabio Don

Jardineiro da avenida Paulista

Meu bisavô plantou
Muita flor
E criou um roseiral
Onde não tinha cor
No tempo do preto-e-branco
Ele revolucionou

Gastou com flores seu tempo
E hoje as suas flores têm cultura
Aqui nessa antenada rua
Dessa cidade em que o café foi fermento
Através do pão viu o sol e a lua
Trabalhou dia e noite com sentimento

E até mais outros projetos, outras plantas . . .
O seu jardim está ainda mais importante
Dando outros frutos, outros futuros . . .
Mas ninguém conhece o jardineiro de antes

Chamava-se Francisco Manoel
Tio Chico Brabo
Homem que adoçava a vida com rosas
E dos espinhos, tinha as mãos grossas

No início do século passado
Ex-funcionário de Ernesto Dias de Castro
De Ramos de Azevedo
E dos Ferraz de Vasconcelos

É nesse coração financeiro
De sangue frio e calculista
Nessa artéria, avenida Paulista
Dessa São Paulo de hoje
Onde para muitos, flor não tem valor
Que ele plantou e colhe agora

Porque até hoje na nossa avenida mais famosa
Tem uma casa chamada: “Casa das Rosas”




Samba da Casa das Rosas


Jardim, periferia da casa
Meras plantas no quintal
Raízes que não se vêem
Folhas e galhos secos vem
Com o vento pra dentro num temporal

Trepadeiras se alastram por suas paredes
As entranhas da casa já ocultam sementes
Beija-flores e borboletas invadiram a sala
De noite o protesto é da cigarra

Jardim, periferia da casa
Vida ao redor da casa principal
Excludente com as flores
Do próprio roseiral

Roseiral à margem da casa
Cercando a planta do arquiteto
E quando perfume exala
Ninguém passa reto

Se estiver na estação certa
Se estiver no Paraíso
Se estiver na primavera
Centro-bairro o sentido

Entre nessa que já virou espaço público
Entre nessa que já virou espaço público

Essa casa que exemplifica bem
Como as periferias são perigosas
Já que antes as rosas eram da casa
E agora a casa é das rosas.



- O poeta e músico Fábio Don é bisneto do jardineiro que plantou as primeiras roseiras da Casa das Rosas. O ‘Samba da casa das rosas’ foi feito especialmente para o sarau.

* * *

Deborah Rebello















A pergunta de Diogo



Diogo chegou esbaforido
E pra mãe foi logo dizendo:
Mãe, alguma coisa
muito estranha tá acontencendo...

Sua mãe sem entender
Perguntou com um sorriso:
O que foi minha doçura?
De cabelos tão, tão lisos

E Diogo a olhá-la
Recém-chegado do atalho
Com os braços bem abertos
Parado como espantalho

Ô mãe! retomou o menino
Por que eu tenho pé descalço?
E todos os do seu Deodato
Andam de charrete ou
De sapato...

Ah... meu filho...
Essas coisa não se explica
Eu nunca aprendi..
Por que é que alguns têm sapato
Como os filhos do Seu Deodato...

Deve de sê que a terra dele
Tem mais tamanho e plantação
E a nossa...bem, a nossa
A cada dia, dá o pão...

Mas o menino muito esperto
Não se deu por satisfeito
Ficar sem resposta não ia
Nem que perguntasse ao prefeito...

Achegou-se de seu pai...
Assim, assim, sem querer muito
E baixinho perguntou..
A justiça é desse mundo?

E seu pai, sem muita pressa
Do chapéu se descobriu
Ô menino arretado...
Nem na hora da sesta!
Onde é que já se viu?

Diogo pediu logo desculpas
E foi saindo de mansinho
Pelas paredes escorregando
Achou a avó cantarolando...

Ô Vó! Como é que uma pessoa
É mais rica que a outra?
Uma trabalha no sol
E a outra só caçoa?

Ah meu neto, é assim...
Mas não pense que é sempre
Tem gente que do trabalho
De bicho virou gente...

E Diogo foi andando
até o galpão -oficina
Seu avô forjava ferro
E martelava bem as quinas...

Ô vô! Chamou Diogo
O qu’ é qu’ é melhor?
Ter sapato e carruagem
Ou dançá c’ o pé no pó?

Seu avô surpreendido..
Deu um sorriso amável..
Êta menino maroto!
Vai ser doutor recomendável...

Noutro dia de pé descalço
Foi à escola com uma meta
Precisava saber direito
Se a vida é linha reta...

A professora querida
Responder não sabia
Ficou tempo calada
E a boca semi-aberta

Mas Diogo não desiste...
E a todos sai perguntando
Por que os filhos do Sinhô Deodato
Têm charrete e têm sapato?

Encontrou na praça velha
No degrau da Santa Matriz
O seu Joca da viola
e com um ar de aprendiz:

Por qu’ é que gente rica
Que mora cá no sertão
Não divide a soma e a sobra
Cante aí no violão...

Canto sim...
num sei também...
e não pergunto a mais ninguém
Só tenho coragem de sobra
Pra tocar toda a minh’obra

Eu quero acreditá
Que a justiça tarda e vem
Que um dia todos comem
Os de a pé e os de trem...

Diogo viu o sorriso e
Entendeu a brincadeira...
Deu de ombro pro artista
E foi a Sinhá rendeira...

Sinhá, qu’é qu’ ocê me diz?
Há renda pra todo mundo
Da mais bela e enfeitadeira
De beleza enfeiticeira?

Pros que cabem o pagar
Faço renda de princesa
Pros que garram no pesado
Faço renda e fiado...

Diogo deus uns passos
Rumo ao mais desconhecido
Toda pergunta que cala
Vai pro mundo do esquecido...

Por que alguns têm tanto
E outros num têm nada?
E vivem com menos que pouco:
a resposta anda calada...

Diogo não sossega
enquanto procura a resposta
E sai perguntando ao mundo,
batendo de porta em porta

De onde vem a fartura
Que escolhe a quem ofertar?
Ou será que a fartura
É um bem a comungar?

Um dia Diogo espera
Que a resposta virá.
Ou virá ainda o dia
Que a pergunta cessará?

Menino esperto, danado.
Está sempre a estranhar
O que faz gente sofrer?
Não pára de perguntar...

E cada vez que a pergunta encara
O seu coração também dispara
Não é de raiva ou de medo.
É mais força e mais desejo

Um dia de chuvarada,
aquele cheiro de terra no ar
Saiu sem os seus sapatos
Pelo atalho a reparar...

Era tanto verde e brilho
as plantas estavam se abrindo
A natureza agradecia
A generosa chuva que caia

De repente Diogo correndo,
deu de cara com Seu Deodato
E mais que depressa falou:
O Sinhô tem quantos sapatos?

Seu Deodato não entendeu
De onde vinha aquela pergunta.
Bom dia, menino, falou o homem,
Do que é que se assunta?

Eu queria mesmo saber
Quantos sapatos tinha
O meu pai tem um par de chinelos
E uma meia pra quando esfria

Vai pra roça e pra missa
Com os mesmos chinelos dele
Mas minha mãe faz questão
Que ele troque de camisa

E o senhor? O senhor sabe
quantos sapatos tem?
Quais são os sapatos macios
E com qual à missa vem?

Seu Deodato pensou um pouco
Deve ser uns cinco ou seis
Mas sabia que não sabia
Resposta exata de uma vez.

Diogo, continuou,
Seu Deodato:
Por que alguns tem tanto
E outros quase nada?

Seu Deodato espantado,
não sabia responder.
Quis dar boa explicação
para o menino aprender

Olha filho, eu tenho muitas terras
Que herdei do avô e pai
E as terras me dão frutos
E assim dinheiro atrai

Com o dinheiro da venda,
sustento a minha família
Dou casa, comida e roupa
e na casa toda a mobília

E Diogo fitou-lhe sério
E pensou na própria família
Será que é questão de sorte
Ter sapatos e ter mobília?

Despediram-se menino e homem
Foi um em cada direção
O menino pensativo
e o homem em confusão

Se eu tenho tanto mais
Se eu herdei tudo dos pais
Seria justa a explicação?
Pra quem tem nada
E trabalha tanto
Qual será a solução?

Pensava o menino de um lado
E seu Deodato noutra ponta
O menino nos sapatos
E o homem na sua monta

Queriam ambos uma resposta
Para a exata desigualdade
Tanta gente com tão pouco
No planeta humanidade...

E quem terá a resposta?
Diogo quer logo saber
Tem pressa e vontade
Do assunto desaparecer

Ou na mágica das fadas
Ou na cabeça dos inteligentes
Diogo sabe que pode,
perguntar não ofende.








- Deborah Rebello é educadora e escritora. Escreve contos, poemas e histórias para crianças.




* * *

Tiely Queen

Direito de Decidir



- TRECHO DA LETRA DA MÚSICA
(GRUPO MINAS DA RIMA - TIELY QUEEN)



"Decisão, opinião, liberdade de expressão!
Aos poucos vem surgindo reação contra ação.
Milhares de mulheres padecem em suas preces
destruídas pela dúvida,
Luta que luta que luta!!!
Crime e castigo, no cordão do seu umbigo.
Não querer é um direito, ombro amigo é preciso.
Independente do Estado: Político ou de Espírito.
Dados alarmantes tudo é impactante.
Homens tem a missão de caminhar lado a lado,
Mas de um milhão não é o bastante? Não!!!!!
Sem discussão, sem interação,
como diz minha amiga Rúbia: - Estou sem forças meu irmão.
Artigos, inclusão? Adequação, inclusão.
É o que mais tem pras jovens, pobres, pretas, periféricas sem ação.
Pra todas as mulheres, homens, crianças e tal.
O Direito de Decidir sobre o seu corpo é Real.





- Tiely Queen apresentou-se junto com o músico Monahyr Campos. Ela é rapper, escritora, cineasta e atriz. Participante dos grupos Ilú Obá de Min e do Minas da Rima. A música "DIREITO DE DECIDIR" foi lançada com o grupo 'Minas da Rima' no projeto Hip Hop e ‘Direitos Sexuais e Reprodutivos’, num encontro no Rio de Janeiro com rappers de várias regiões do país, onde foi produzido o CD Hip Hop e Sexualidade. Para escutar a música "Direito de Decidir" na íntegra é só acessar: www.myspace.com/tielyqueen.








* * *

Simone Paulino

Bananas Verdes




- Simone Paulino é escritora. O conto "Bananas Verdes", lido no sarau, faz parte do livro "Abraços Negados", publicado em 2005, pela Editora All Books - Casa do Psicólogo. Além deste, publicou em 2003 "Identidade Perdida - Memórias de um Morador de Rua", pela Legnar Editora; em parceria com Jorge Cordeiro Barbosa, um morador de rua de SP.

Cecília Furquim - transposição de Camões

Velho do Restelo na periferia
Criado por Cecília Furquim, a partir do Episódio do ‘Velho do Restelo’ de Camões (Os Lusíadas) para variante não culta, da periferia. Feito especialmente para o sarau e interpretado pelo ator Emerson Caperbat, com acompanhamento musical da banda ‘Tupinambá e seus Turebas’.



95



Aí Fama! Fissura! Inútil mando

Dos mano que persegue a autoridade!

Aí parada torta, anseio insano

mascarada com a tal dignidade!

Que punição gigante e puro dano

Cê quer impor ao povo da cidade!

Que extermínio, que risco, que miséria,

sem dó cê vem e enterra na galera!



96



Agonia na vida e chumbo na alma

Amiga da traição e do abandono

É uma boca que come e ainda baba

Devora o patrimônio, terra, trono

Cheia das pompa, ávida de palma

Na verdade, cê é digna de nojo

Te chamam fama, glória obcecada

Que ilude toda a gente alienada.



97



Pra que cena sangrenta cê pretende

Levar os truta e as nação toda do mundo?

Que ameaça, que escuro, que parede

Vem junto com a medalha, lá na tumba?

Quanta ilusão de grana e quanta sede

De conquista, cê planta, tão profunda?

Que parada cê jura? Que proveito?

Que trunfo, que troféu? Que lôco feito?



98 -



E vocês aí também, filho do Adão

Que desobedeceu, comeu o fruto

E levou toda a raça, sem perdão,

A ser chutada do Éden, e com tudo

Além disso, perdendo a condição

de inocência manêra, jeito puro

Foi tirado daquela vida mansa

E atirado na guerra e na matança:



99



Já que cê curte às pampa a arrogância

E com ela se entrega à fantasia;

Já que cê colocou na intolerância

nome, samba, suor e valentia;

já que cê valoriza a opulência

da morte, da extinção, revés da vida

que até Jesus na cruz, o salvador

com medo, deu à ela o seu valor.



100



Cê não segue com fé o dom de Deus,

Dele usando e abusando nas batalha?

Não fazem o mesmo, os mouro com suas lei,

Que os mano aí, com Cristo nas mortalha?

Cês já não se fartaram de ser rei,

E querem sempre mais dessas migalha?

Eles também não segue a onda bruta,

Pra conquistar a vitória nas disputa?


101

- Cês vão vazá da área, no perigo,
indo pros cafundó atrás de ouro,
deixando a terra aqui pro inimigo
E os mais fraco atolado em mal-agouro?
Prefere se lançá no alto risco
Prá sê celebridade, colhe os louro
De senhor do caminho em posse esférica
Da Ásia, Europa, África e América?

102

Eu vô rogá uma praga pro primeiro
Que criô o barco a vela e flutuou!
Navegar é preciso? Não! marinheiro
Se a lei é mesmo justa, seu doutor,
Nenhuma melodia, dom maneiro,
Nem a mais rica voz de cantador
Vai te dá Fama ou glória iluminada,
Que tua memória morra, vire nada!

103

Já ouviu falá dum mito, o Prometeu
Que trouxe pros irmão antigo o fogo?
O que devia sê luz, escureceu,
Nos cano o maior estrago, louco logro!
Se não tivesse dado o que ele deu
Pudíamo ficá longe desse jogo,
Os desejo alto, irado da partilha
prendeu em brasa a raça na guerrilha

104

Fez só besteira o filho do Deus sol
Que despencou no mar, foi pro além
E o filho do arquiteto se deu mal,
pois desobedeceu seu pai também:
nenhum impulso pulha ou celestial
por fogo, ferro ou água, o homem tem
poder de recusar, de dizer não.
Reles destino! Estranha condição.

* * *






Tupinambá e seus Turebas



- A Banda de Funk-rock ‘Tupinambá e seus Turebas’ fechou o sarau com quatro canções de seu repertório: ‘Esclareça ao tal’, ‘Paga Sapo’, ‘Isso leva a quê’, e Marginal’. Em 1997 a música Marginal foi vencedora do Festivalda. Seu Cd de estréia já gravado, aguarda gravadora ou selo para futuro lançamento.

* * *












Gota d´água

GOTA D’ÁGUA:
O QUE PAIRA
NA QUEDA?

Assassinou os dois filhos e se matou.
Uma tragédia carioca: tresloucado gesto, vingança macabra, ciúme.
Joana de tal, por causa de um tal Jasão.[1]

O que o subtítulo, apresentado como notícia de jornal de crimes, tem a desestabilizar o leitor (ou espectador) da peça Gota d’água? Apenas mais uma tragédia familiar na periferia, contando com nossa indiferença disfarçada, nosso superficial susto. Mas o leitor informado já sabe que se trata de uma recriação de Medéia. A tragédia comum se destaca na identificação clássica.

Continuando, o leitor se informa do especial do Vianinha veiculado na Globo, e que inspirou a peça[2]: a nossa cultura de bicheiro, de samba, de macumba, que foram impressos à tragédia de Eurípides como denúncia social brasileira em plena ditadura. Nela, a heroína sucumbe após a vingança. E mais, o leitor se depara com isso retrabalhado pelos autores Paulo Pontes e Chico Buarque com várias outras contribuições, como: verso popular, canção urbana, teatro político e mudanças no enredo. Banaliza-se a herança aristocrática e volta-se à tragédia comum, mas com uma nota dissonante: o governo autoritário, a classe média que o apóia, a inconsciência, a paralisia das classes baixas: todos são convidados a partilhar da responsabilidade social que permeia a tragédia familiar.

Resultado: o ato final de Joana se potencializa e transborda, com infiltração incômoda, nesse percurso de ir e vir da tragédia comum à tragédia grega. Percurso formatado por uma miscelânea de referências e escolhas estéticas em que a erudição vem banhada no popular, o popular banhado na erudição. Lendo-a hoje, em 2007, a água que cai de Joana reflete, de algum modo, a água que está em cada bueiro da esquina; em cada gota que, convertida em violência, vira veneno (ou bala) e pode subitamente respingar na cara do inimigo, do amigo, de si mesmo, ou de quem passar inadvertidamente pela frente. É isso que sugere o infanticídio seguido de suicídio da protagonista: uma tragédia por demais comum e ao mesmo tempo incomum, louca e lúcida, distante e presente, desapercebida e aterradora. Querendo entender a sugestão, pretendo reconstituir um pouco da rede de relações que a torna possível.

Da tragédia Grega propriamente, a peça busca um personagem poderoso fragilizado, que suscita temor e pena. Como sabemos, Medéia era poderosa na sua aristocracia, na sua detenção de poderes sobrenaturais, na familiaridade com o Deus Sol, na coragem, determinação, e crueldade. Temida pela trajetória de ousada ajuda oferecida a Jasão na conquista do ‘velocino de ouro’, na fuga dos Argonautas, sacrificando seu irmão, e ainda ao regressar a Iolco, na vingança destinada ao tio de Jasão, que havia usurpado o trono do sobrinho. Frágil, porém, na sua condição de mulher e estrangeira, sem direitos na civilização grega; presa pelas imposições que possibilitam a manifestação do desejo ao homem, sem espaço para gozar de sua nobreza bárbara. Para contrabalançar seu baixo status de estrangeira, ela goza de respeito na comunidade. Respeito que emana da gratidão pelo fato dela ter acabado com a seca, a fome a infertilidade que tomava Corinto, condição dada a ela para poder ter seu pedido de asilo aceito[3]. Temos então uma protagonista complexa, capaz de suscitar terror e piedade, exatamente como pretendia a tragédia, segundo Aristóteles.

Essa característica funcional do mito, tal qual trabalhado por Eurípides. apresentava-se muito adequada aos propósitos de Chico e Pontes na intenção de suscitar envolvimento com a personagem Joana, cuja condição é duplamente desqualificada e explorada pelos mais ‘fortes’, no caso homens e abastados. Junto à pena, o temor é inevitável, na medida em que ela é uma ‘macumbeira’ capaz de dirigir energia destrutiva a seus inimigos e de transformar sua impotência em violência bárbara e irracional, o que de fato acontece quando ela termina por matar os próprios filhos e suicidar-se. A diferença aqui é que seus poderes não são, nem de longe, páreo para os do sistema que a esmaga. Sua dissimulação não encontra ingênuos a acreditar nela. Se há um Deus sol que a resgata para outras paragens, mais seguras, não são elas paragens imanentes.

Também o caráter complacente de Medéia, escondido no assassínio impiedoso dos próprios filhos, fica mais evidente em Gota d’água. O que mais aterroriza a platéia, qualquer mãe, qualquer ser humano e que, aparentemente não teria justificativa nenhuma, pode ser visto como benefício, se levarmos em conta a versão do mito, anterior a Eurípides, que apresentava os habitantes de Corinto como responsáveis pela morte das crianças, para vingar seus soberanos.

Segundo consta, Eurípides teria modificado sua versão a pedido dos governadores da cidade, que não queriam ver o seu nome ligado ao infanticídio. Faz, então, Medéia se incumbir do assassinato dos filhos, para que seu marido traidor sofra ainda mais. Ao fazê-lo, o autor certamente aumentou a tensão da heroína, acessando forças inconscientes muito além do aceitável. Em todo caso, a informação tradicional, de que as crianças seriam vítimas do rancor da população transferido para a prole da inimiga, leva o público a considerar a morte das crianças como um mal necessário, já que elas teriam fim pior.

Medéia (verso 1411[4]):




Não volto atrás em minhas decisões, amigas;
Sem perder tempo matarei minhas crianças
E fugirei daqui. Não quero, demorando,
Oferecer meus filhos aos golpes mortíferos
De mãos ainda mais hostis. De qualquer modo
Eles devem morrer e, se é inevitável,
Eu mesma, que os dei à luz, os matarei.

Podemos, no entanto, ao analisar os versos 1189 – 1197, abaixo, perceber que a feiticeira poderia ter usado de mágica para levá-las em sua fuga, mas aí a dimensão da vingança ao Jasão seria atenuada, e seu pathos não o permitiu:

Medéia (verso 1189[5]):




Adeus, meus desígnios de há pouco! Levarei
meus filhos para fora do país comigo.
Será que apenas para amargurar o pai
vou desgraçá-los, duplicando a minha dor?
Isso não vou fazer! Adeus meus planos... Não!
Mas, que sentimentos são esses? Vou tornar-me
alvo de escárnio, deixando meus inimigos
impunes? Não! Tenho de ousar! A covardia
abre-me a alma a pensamentos vacilantes.

Já na peça brasileira, apesar de não ter conseguido consumar a morte de seus inimigos, Joana tem motivos mais densos para pensar que o legado da vida não será um benefício às crianças, ou a ela mesma. Certamente serão maltratados, na medida em que seus poderes não são suficientes para livrá-los de uma condição difícil e injusta. Das forças de Medéia, Joana ficou apenas com uma pequena parte, e da precariedade, ficou com tudo e um pouco mais.



Joana:


Meus filhos, mamãe queria dizer
Uma coisa a vocês. Chegou a hora
de descansar. Fiquem perto de mim
......................................................
A Creonte, à filha, a Jasão e companhia
Vou deixar esse presente de casamento
Eu transfiro pra vocês a nossa agonia
Porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento
De conviver com a miséria todo dia
É pior que a morte por envenenamento.
[6]

Por outro lado, junto ao ‘menor dos males’ que uma mãe oferece a si mesma e sua prole, também se apresenta em Joana o ímpeto vingativo, violento, irracional de Medéia. Desde o início da peça, vemos a cisão daquilo que sustentava sua personalidade: seu ‘instinto de vida’ se apoiava exclusivamente no amor e desejo devotado ao marido. Vários foram os sacrifícios, e todos se justificavam na presença física do homem amado, fazendo-a mulher. O abandono, justamente quando ele começava a despontar como sambista respeitável, produz um vazio que a desestabiliza profundamente. Somadas a isto, as perdas anteriores, ligadas à conquista de Jasão (sua juventude, sua energia consumida), se apresentam desnecessárias. Sem o ‘prêmio’ de seus esforços, eles perdem o sentido. A percepção de ter sido usada e jogada fora quando não mais necessária, trocada por alguém mais jovem e influente, demonstra quão ilusória fora a idéia de ter sido amada; os dez anos deixam de ser motivo de orgulho para serem motivo de vergonha e ela se apresenta a si mesma, e à comunidade, como ser logrado. Sua força, que lhe dava identidade, fora toda canalizada para o sucesso alheio, nada restando a ela.

Essa experiência de mulher abandonada não poderia ser mais comum. Quantas não conhecemos que já passaram por isso? E até hoje, o que se espera de uma mulher nessa situação seria um período de luto que deve ser superado para o bem de todos.

Vizinhas:


Comadre Joana
Recolhe essa dor

Guarda o teu rancor
Pra outra ocasião

Comadre Joana
Abafa essa brasa
Recolhe pra casa
Não pensa mais não
Comadre Joana
Recolhe esses dentes
Bota panos quentes
No teu coração
[7]

Como Joana não colabora com essa expectativa, demonstrando ciúmes desmedido, raiva, inconformação, e na medida em que seus inimigos temem sua força; o exílio de sua comunidade (A Vila do Meio Dia), de seu lar (casinha com várias prestações já pagas), é a ela imposto de forma extremamente violenta, com ameaças verbais e presença da polícia, junto de uma compensação em dinheiro, mascarada de favor. Nesse ponto é importante ressaltar a carga social que acompanha a trajetória da mulher, além do fato dela já ser em si determinada pela injusta situação inferiorizada no sistema patriarcal.

Joana é uma brasileira pobre. O próprio nome dado a ela reforça isso. É o feminino de João, nome masculino dos mais populares aqui. Maria seria o feminino equivalente em popularidade; seguido de outros como Ana. Porém, o que temos é Joana: masculino tornado feminino. Sendo feminina na dedicação, na doação; masculina na altivez, na indisposição ao conformismo, na violência; Joana carrega também no nome algo de um andrógino de baixo poder aquisitivo. Já os nomes dos homens algozes de sua fragilidade amorosa e política, Jasão e Creonte, não se alteraram, continuam os mesmos da tragédia de Eurípides. Creonte é um representante da dominação capitalista e Jasão, atraído, se une a ele. Não têm, portanto, uma identificação genuína pela terra, e a manutenção de seus nomes fica aí coerente.

A condição de feiticeira de Medéia, transformada em umbandista ou macumbeira, transpõe com sucesso o caráter bárbaro da heroína, detentora de saberes mágicos em terra estrangeira. O umbandista no Brasil é o elemento africano transplantado, vítima da escravidão, que resistiu adaptando sua cultura ao local. Joana toma então contornos de uma brasileira típica, miscigenada na raça, na cultura, na religião; exercendo a herança escravocrata de explorada sem direitos num momento de ditadura militar, quando a crescente desproporção de renda das classes é o modelo implantado pelo regime autoritário.

A realeza de Creonte se dá no fato dele ser o dono de um condomínio de moradores de baixa renda, no Rio de Janeiro, que fez as vendas em sistema de empréstimo a juros altos. Todos devem ser submissos a ele por não estarem em dia com as prestações, podendo ser expulsos e perder o investimento feito. Essa estratégia de atualizar o poder de um ‘rei’ diante de seus ‘súditos’ foi criticada como inverossímil por Sábato Magaldi na época de lançamento da peça, já que a cobrança de correção monetária não era, naquele momento, permitida aos particulares. No entanto Sábato admite que, apesar de incômoda, a inverossimilhança serve como “símbolo do sistema imobiliário vigente”[8].

O que vemos em Gota D’água é, então, o drama de Medéia como cidadã, estendido ao de todos os outros habitantes do condomínio, e por analogia, ao de todos os brasileiros pobres procurando moradia. A tensão da heroína é partilhada por um grupo, não como sugestão, mas se materializa de fato nos vizinhos e nas vizinhas. Eles poderiam ser identificados apenas à função de comentadores da ação do coro Grego, voz da comunidade; porém passam a fazer parte direta do conflito, sendo conscientizados e liderados por Egeu contra os abusos de Creonte. A tentativa do ‘rei de Atenas’ é frustrada pelo inimigo com a oferta de quitação das dívidas anteriores e melhorias no condomínio: construção de uma quadra de futebol, colocação de telefones e reforma das fachadas. A ilusão de estarem sendo beneficiados faz com que os moradores parem com seu movimento de protesto e façam um esforço para continuar a pagar as prestações que restam e seus juros exorbitantes. Essa tática, elaborada por Jasão, já ‘vendido’ ao sogro, tem um desenvolvimento um tanto quanto ‘didático’, bem ao gosto dos preceitos Brechtinianos; procurando alertar claramente o público mais ingênuo com relação às estratégias governamentais de ludibriar o povo e arrochar ainda mais os baixos salários. O apelo ao futebol, a uma ‘modernização’ e ‘embelezamento’ do espaço comunitário são significativos e nos remetem ao slogan: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Não apenas Jasão aparece como traidor da sua gente, mas também os moradores, sem perceber, colaboram com o inimigo contra eles mesmos e compactuam com a injusta perda de moradia e imposição de exílio, feitas à Joana, ao deixar-se pacificar pelas ofertas e aceitar trabalho na festa de casamento de Jasão.

Se, por um lado, a inserção de ações paralelas na incitação ao protesto e seu abafamento conquistam o intento de didatismo, caro à reflexão política que deve acompanhar o teatro com preocupações sociais, segundo Brecht; por outro favorece um aspecto da peça que é a extensão excessiva de sua narração, tornando-a um pouco cansativa.

Somadas a este recurso épico, as músicas também têm função de distanciamento, quebrando o realismo, a ilusão, e lembrando ao público que aquilo nada mais é do que um espetáculo. As letras e melodias, verdadeiras obras primas que acompanharam as gerações vindouras, reforçam os muitos dramas envolvidos, a começar pelo de Jasão, o autor da música tema. No entanto, ‘Gota d’água’ é paulatinamente apropriada por Joana, e termina por pairar como parte perigosa do copo de todos os cidadãos: aqueles desrespeitados pelo regime, que podem explodir em vingança sangrenta, e aqueles que com eles convivem.



Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
Faça não
Pode ser a gota d’água.
[9]

Joana dessa forma, abusada como mulher e cidadã, é pressionada a uma saída apenas: submissão e sobrevivência precária, tendo que começar do zero novamente num outro lugar, só que com dois filhos, muitas rugas e dores a mais. Assim como Medéia, instigada pela necessidade de dignidade em detrimento da ‘sobrevivência’, Joana deixa-se levar pela fúria irracional atacando seus inimigos. Como foi dito, porém, o Creonte brasileiro não é presa fácil, e rejeita os bolinhos envenenados que ela oferece à sua filha. Joana assassina, em seguida, os filhos, para poupá-los, acreditando no ‘menor dos males’ e, ao mesmo tempo, para puni-los, dando vazão a uma rejeição destacada desde o início, quando coloca parte da culpa no nascimento e criação de seus rebentos por um envelhecimento prematuro que teria levado Jasão a considerá-la menos atraente. Também, e principalmente, realiza a grande vingança de retirar os frutos de seu amor da estirpe de Jasão, negando a ele a continuidade da vida através dos filhos. A sobreposição de ‘instinto de morte’ fica evidente por ser Joana igualmente punida e por não haver nada mais auto-flagelador para uma mãe do que sacrificar ela mesma sua cria. De forma diferenciada de Medéia, seguindo a idéia de Viana Filho, suicida-se completando o processo de auto-destruição.

As forças do ID se manifestam com toda a sua cólera contra o ‘super ego’ civilizador. O excesso de violência que sofreu do sistema ‘civilizado’ não parece ser menos cruel do que o modo de vida bárbaro das antecessoras tribais de Medéia, no sistema matriarcal, que sacrificava humanos na busca de revitalização na morte, como continuidade do ciclo da vida[10]. Um grande ‘não’, absurdo e cheio de razão é o resultado da gota final, denunciando a "interseção do mal que se sente (a dor) e do mal que se inflige (a iniquidade)’[11]. Crueldade bárbara por crueldade civilizada. Uma reação plena de desequilíbrio, com forças edificantes e destruidoras, que dão à peça carioca brilho e energia. Do contrário teríamos apenas uma fórmula maniqueísta, direcionada à denúncia social.

As virtudes e mesmo os ‘defeitos’ da peça foram cuidadosamente elaborados por Chico e Pontes para atingir um determinado efeito: envolver o espectador num emaranhado de sensações, encantamentos, estranhamentos, lucidez política, desesperança e indignação. Na introdução ao texto dramático, os autores compartilham as preocupações que encaminharam sua criação, elencando três, consideradas fundamentais: a denúncia da função do regime autoritário na implantação do modelo de intensa desproporção de renda das classes, bem como o papel da classe média na sua legitimação; a busca da identidade cultural brasileira na figura e trajetória do povo, remontando ao programa da dramaturgia nacional popular iniciado na década de 60; e finalmente a preocupação formal. Foi ressaltada a necessidade de resgatar a palavra como ‘centro do acontecimento dramático’, ou seja, como veículo de reflexão de uma realidade complexa, ferramenta de transporte ao pensamento racional, profundamente indagativo da vida humana e social.

Os autores elegeram a poesia como a forma mais adequada de trabalhar a palavra, já que, aliada à música, ela persegue o questionamento da vida, no que tem de palpável, concreto, frio, calculado, por um lado; sem deixar de envolver o que tem de obscuro, relativo, passional, imprevisível por outro. Com o verso propuseram-se a buscar uma racionalidade, que eles chamaram de ‘não estreita’, evitando um discurso realista.

No entanto, o efeito geral das falas dos personagens juntamente com a estrutura da peça, estão fortemente amparados num mundo imaginário, não de todo, mas com uma boa carga realista, se o compararmos com outras experiências da arte moderna. Obras de vanguarda consideraram o realismo insuficiente para abarcar a complexidade da experiência humana na modernidade, e procuraram evitá-lo. Porém, o teatro popular tende a apropriar-se de formas expressivas que estabeleçam uma comunicação imediata com o espectador, para garantir sua compreensão por amplas camadas da população. É o caso de Gota d’água, que se afasta do realismo em alguns aspectos, mas não procura radicalismos experimentais para não correr o risco de tornar-se hermética. Ao privilegiar o raciocínio ‘não estreito’ e ao mesmo tempo ambicionar um público largo, a obra volta-se para a poesia popular.

Chico e Pontes criaram um texto profundamente melopéico, que percorre a peça desde a primeira fala até a última, sem ficar incompatível com a intenção de reconstituir o coloquialismo das variantes lingüísticas de classes cariocas desfavorecidas, da década de 70. Há elevação da forma poética ao status de molde de todo o mundo imaginário, que será erguido diante dos olhos e ouvidos do espectador, assim como na antiga tragédia Ática. Porém o tom elevado é invertido, seguindo a tendência moderna, e a informalidade é construída através de uma escolha lexical coerente com a variante dos personagens, carregada de expressões idiomáticas próprias, gírias, palavras de baixo calão, e freqüente rebaixamento de imagens. O caráter chulo da linguagem do subúrbio é intensamente explorado, criando um certo choque estético.

A peça teve grande impacto de crítica e de público quando lançada, e acredito que não tenha sido uma ‘voz’ transitória. Embora, nos dias de hoje, o questionamento social que ela encerra possa parecer, em alguns aspectos ‘fora de época’, porque aparentemente simplificado e insuficiente para os rumos atuais, Gota d’água ainda tem um poder iluminador e iluminado, atual e contundente, graças à sua forma ‘não estreita’.

Tivemos, em fevereiro deste ano, discussões acaloradas sobre a morte brutal de um garoto no Rio de Janeiro, que fora arrastado pela rua, preso ao carro e esmagado contra o asfalto; e de como um de seus algozes, menor de idade, reforçou desvios tão cômodos para o sistema, como a exigência da diminuição da idade penal. Estamos em meio a casos e casos de tragédias comuns que se repetem, de Joanas, Joãos e Anas, usados, descartados e vingativos que saem por aí matando passantes, inimigos e filhos, e se matando a cada dia. Essas Joanas que amamos e odiamos, que queremos ajudar e não ajudamos, têm muito ainda que comover e destruir, reproduzindo o ‘não’ bárbaro, em meio à barbárie da civilização.


Cecilia Silva Furquim Marinho

(Trabalho apresentado para o professor Jayme Guinsburg no programa de pós graduação em literatura Brasileira, na disciplina ‘Autoritarismo, Violência e Melancolia’, realizada no primeiro semestre de 2007)




Notas:
[1] Citação não literal dos dizeres na capa da peça Gota d’água (Buarque & Pontes, 1976)
[2] Na introdução à peça, os autores afirmam que a adaptação de Medéia para a tv “forneceu a indicação de que na densa trama de Eurípides estavam contidos os elementos da tragédia” que queriam revelar. (id., p.xx). O roteiro de Oduvaldo Viana Filho foi publicado na ‘Revista Vozes’ (Viana Filho, 1999 – p127-158).
[3] Candido, Dezembro de 2001.
[4] Medéia, tradução de Mário da Gama Kury (Eurípides. 1991, p 69)
[5] Id. p 62.
[6] Buarque e Pontes. Ibid. p 167.
[7] Buarque e Pontes. Ibid. p 37.
[8] Magaldi (Jornal da Tarde, 30/01/76)
[9] Buarque e Pontes. Ibid. p 159.
[10] Rinne, 1988 – p43.
[11] Janine Ribeiro, 1999, p 12.



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