quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Desmaio






















DESMAIO
Letra e música de Cecilia Furquim, apresentada no Sarau 'Chama Poética: Da Alegria'; sexta, dia 7/12/2007, às 20h, na biblioteca Alceu de Amoroso Lima. Acompanhamento de Éder Melgar.


Cuidado que eu sou
Cuidado que eu

Eu pairo, eu caio
Sereno de maio
e na madrugada
meu bem não me deixa dormir.

Eu sou do meio

de maio das mães
das gordas cadeiras
de manhas e mamas leiteiras.

Severa me interno
na mágoa do rio
e muda de inverno
me planto só meia saída



Sandália arrastada
e dália na sala
Desfolha-me a malha voraz

Sonada na cama
e de camisola
eu bailo de banda, sou nada

mas que malcriada
criada da casa
na tortura sua eu suo

Cuidado que eu sua
Cuidado que eu

Sereno de maio
Ser nó e desmaio
E na madrugada
Meu bem já me deixa dormir.




imagem retirada de: http://www.estacaocapixaba.com.br/textos/folclore/gsn/roda/sereno.html

Dream a little dream of me
















imagem retirada do site:

Duas versões diferentes da mesma música:


DREAM A LITTLE DREAM OF ME
Música: Wilber Schwandt e Fabian André - Letra: Gus Kahn

Stars shining bright above you
Night breezes seem to whisper "I love you"
Birds singing in a sycamore tree
Dream a little dream of me.

Say nighty-nighty and kiss me
Just hold me tight and tell me you'll miss me
While I'm alone and blue as can be
Dream a little dream of me.

Stars fading but I linger on dear
Still craving your kiss
I'm longing to linger till dawn dear
Just singing this.

Sweet dreams till sunbeams find you
Sweet dreams that leave all worries behind you
But in your dreams whatever they be
Dream a little dream of me.




SONHO UM SONHO A ME ENVOLVER
Tradução e versão: Cecilia Furquim
Apresentada no sarau 'Chama Poética: Longa é a arte, tão breve a vida'; na biblioteca Alceu Amoroso Lima, no dia 9 de novembro, às 20 horas. Acompanhamento no violão de Marcelo Américo.


Estrelas luzem chama
A brisa vem dizer que te ama
Os pássaros cantando no ipê
Sonho um sonho a me envolver.

Boa noite, vem me afaga.
Me beija e diz que eu faço falta
Enquanto estou sozinha a sofrer
Sonho um sonho a me envolver.

Estrelas se vão, mas eu fico
Querendo o teu mel
No canto pedindo o meu brilho
Em claro céu.

Sonhos doces, raios laçam
Sonhos doces, onde a calma abraça
Vem sopra nos teus sonhos pra ter
Sonho um sonho a me envolver.





SONHO UM SONHO SÓ PRA MIM
Tradução e versão de Beto Furquim

O brilho das estrelas
A brisa que me assopra: te amo
Uirapuru no pé de açai
Sonha um sonho só pra mim

Me beija, noite alta
Me abraça e me promete saudade
Sozinho essa tristeza sem fim
Sonha um sonho só pra mim

Estrelas cansadas desmaiam
Mas eu não dormi
Um beijo meus lábios ensaiam
Cantando assim.

Um raio de sol flagra
Um sonho tão bonito que acaba
Mas seja lá o que sonhes enfim
Sonha um sonho só pra mim.





En saio coisa: João Gilberto e Anton Webern -







Resenha apresentada em Outubro de 2007 na disciplina: ‘Literatura e música no Brasil’; ministrada pelo professor José Miguel Wisnik.



EN SAIO COISA


No texto “João Gilberto / Anton Webern” [1], o ensaísta, tradutor, crítico e poeta concreto Augusto de Campos celebra a invenção na música popular inventando um ensaio crítico que sai da convencional prosa-uninarrada-contínua. Ao comentar o gênero de seu trabalho, denomina-o “coisa” [2]. Ela foi publicada no livro ‘Balanço da bossa e outras bossas’, que por sua vez é uma republicação da obra ‘Balanço da Bossa’ (com doze textos), acrescida de mais dezenove textos. A segunda edição foi lançada em 1974, enquanto a primeira havia saído em maio de 1968, em plena efervescência tropicália. Nesse acréscimo, o autor (in)completa um registro reflexivo do que de mais relevante e inovador se havia produzido na música popular e seus pontos de contato com a música erudita de vanguarda. Como ele mesmo afirma no último texto ‘Balanço do balanço’, ao buscar a captação viva de algo presente e em constante mutação, não poderia enquadrar os acontecimentos daquele momento numa reflexão acabada, mas poderia perseguir os preceitos de Ezra Pound no reconhecimento das ‘news that stays news’ (notícias que permanecem novidade). Assim o fez. Lido hoje, 2007, o livro nos remete aos anos bossa nova - tropicália sem deixar de sugerir uma conexão com o que hoje se faz ou se desfaz na MPB.

O ensaio/coisa que pretendo analisar é o penúltimo texto da obra, e gira em torno da ‘notícia-contínua-novidade’ de dois músicos considerados pelo autor inventores por excelência. Um é o austríaco Anton Webern que, junto com Schoenberg e Alban Berg, revolucionou a música erudita do século vinte; o outro é João Gilberto, que revolucionou a MPB com a BN, seu jeito de cantar cool, os efeitos despojados e tensos, desconcertantes do seu violão. No ensaio, Augusto como que sumariza o que já, no livro, havia sido dito anteriormente sobre Webern, Caetano, Lupicínio, João especialmente, e outros. A ‘coisa’ denuncia, já na composição gráfica do título, o entrelaçamento das escolhas de João e Webern, a fusão do erudito e do popular na MPB. Isso vem como forma e conteúdo juntos não só no título, mas no desenvolvimento do texto, como deve ser uma verdadeira síntese.

Ao falar da vanguarda musical dodecafônica, que suprime a hierarquia das notas da escala cromática; e da vanguarda sofisticada dissonante da BN, reduzida de contrapontos; Augusto mistura suas considerações às de outros comentadores dos músicos inventores. Retirou-as de cartas, biografias, entrevistas, depoimentos variados, apresentados sempre com letra ‘caixa baixa’ à la Cummings. Insere também, numa mescla semiótica, trechos de partituras, estórias em quadrinhos, poemas; trechos de músicas de Lupicínio, Caetano, João Gilberto (músicas suas por autoria ou interpretação); tudo isso de forma caótica, desordenada, mas com um espantoso efeito unificador. Não há tensão seguida de relaxamento no texto colagem, não há ênfases; os trechos se ligam soltos, cheios de cortes internos, com se fossem versos, mas prosaicamente distendidos. Quebrando a linearidade, o autor chama atenção para as unidades que compõe a estrutura das prosas, assim como os músicos focalizados faziam com as notas e timbres da composição. Tomando um exemplo ao acaso:

“a mente de webern foi sempre radical;
partia imediatamente
para as últimas conseqüências
não há de fato, nada
na música de Webern
a não ser últimas conseqüências” (robert craft)[3]

A apropriação acima, como ‘ready made’, conferiu a ‘função poética Jakobsiana’ na mais despretensiosa fala. A nova disposição faz saltar aos olhos rimas toantes (mente/sempre); paronomásias encadeadas em (mente/imediatamente; partia/para); espelhadas (não há / na / a não); assonâncias (não há de fato nada) e o encadeamento de “últimas conseqüências”. O texto passa a ter ritmo, espaço, som! Como a música de que fala.

As considerações do autor, somadas às citações alheias, oferecem insights, não só ao entendimento da obra e das personalidades de Webern / João, como também sua inter-influência no trabalho de revalorização de Lupicínio, na antropofagia tropicalista de Caetano e na poesia verbivocovisual de Augusto. A radicalização do pouco que é muito, a nota só, sutileza, contenção, brevidade, espacialização, rigor quase obsessivo. A todo tempo isso é reafirmado de um ponto de vista diferente. Costurado também pela denúncia da indiferença que foi e ainda é, de certa forma, dada à obra do compositor Austríaco, bem como à do Gaúcho de ‘Volta’. Por tabela, também deflagra a pouca aceitação do público diante das incursões mais radicais de Caetano e da poesia concreta, constantemente acusada de difícil e distante.


























A trança de signos elaborada no ensaio/coisa começa com uma foto de Webern e Berg (acima), seguida de um trecho de Stravinsky, que a descreve: “webern, sapatos de tipo camponês, coberto de barro”. Termina com uma foto de João Gilberto, emoldurada acima por uma pergunta e abaixo pela resposta: “e o que é que isso tudo tem a ver com João Gilberto?” / “uma sílaba”. Um fecho aberto, que sugere mas não diz. Deixa pistas muito tênues impedindo uma interpretação assertiva. O que pode ser essa sílaba? É o ‘BER’, que figura nos dois nomes tematizados? É possível que ela seja parte da palavra SÍlaba, o ‘SI’, que já havia sido lançado no ponto em que Robert Craft afirma quase sempre haver sons de SIno[4] evocados na obra de Webern. Já lançado na frase/verso monóstica “SIna e Sino”; no trecho (sobre o) “assasSIno de Webern, chamado Bell (isto é, SIno)”. Em várias palavras utilizadas ao longo do texto: SIlêncio, SIgnificando, SI mesmo, imposSÍvel, impresSIonado, Simples. No fato de que a foto de João o apresenta com a cabeça curvada para dentro, apoiada num dos punhos, os braços cruzados, pensando, enSImesmado. Na movimentação SIncopada de ‘Desafinado’. Na nota ‘SI’ de ‘Samba de uma nota só’.

Tudo isso estaria colocando os artistas citados (Caetano, Lupicínio revisitado, o próprio Augusto) partindo da simplicidade dos sapatos camponês de Webern, fertilizados de invenção pelo barro que os envolve; para então levarem adiante a música nova numa espiral multisígnica que desemboca na (ou devora a) forma introspectiva ‘João Gilberto’?

Unanswered question![5]

[1] Campos, Augusto. “João Gilberto / Anton Webern” in BALANÇO DA BOSSA E OUTRAS BOSSAS (com Brasil Rocha Brito, Julio Medaglia, Gilberto Mendes), São Paulo: Perspectiva, 2005, pp312 a 331)
[2] “Em `E outras bossas`, entremeados com estudos, crônicas, comentários e entrevistas sobre música popular, estão alguns trabalhos que fiz sobre música erudita moderna, com algumas infiltrações poéticas, tudo culminando com a “coisa” que escrevi sobre Webern/João Gilberto.” (CAMPOS: 2005 p 347).
[3] Campos: 2005, p330.
[4] Grifos meus
[5] Citação de obra homônima de Charles Ives, que segundo Augusto é “uma das mais extraordinárias páginas da música contemporânea”.

A CULTURA REBELDE DOS ANOS 60 - pelo olhar marxista






Resenha apresentada em Outubro de 2007 na disciplina: 'Literatura e Música no Brasil', ministrada por José Miguel Wisnik.


A CULTURA REBELDE DOS ANOS 60
PELO OLHAR MARXISTA


O momento político e cultural, que se deu entre 1964 e 1969 durante a ditadura, é analisado de forma admirável no ensaio “Cultura e Política”, de Roberto Schwarz, conhecido ensaísta e professor da Unicamp. Roberto assinala as diretas relações sociológicas com a produção cultural do país, especialmente o TROPICALISMO e a produção teatral de grupos como o ARENA e o OFICINA. Antes de lançar alguns comentários, gostaria de parafraseá-lo.

Começa apontando, como anomalia, entre os anos mencionados acima, a manutenção da hegemonia cultural de esquerda num governo autoritário de direita; o que se explica pelo histórico socialista no país: “forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes”[1]. Segundo ele, de 50 em diante, influenciado pelo Populismo, o Partido Comunista alimentou a ilusão de que; através do anti-imperialismo e uma busca limitada às reinvindicações salariais, de reforma agrária e política externa; teria o apoio da burguesia industrial progressista contra os setores arcaicos, agrários das classes dominantes. Essa característica teria feito com que a ideologia de esquerda se fortalecesse superficialmente. No momento em que; nesse clima, ultrapassando um pouco as limitações demagógicas populistas; os camponeses, operários e outros setores da massa popular começam a se movimentar, a direita cria “o fantasma da socialização” e o golpe militar se dá diante da esquerda impotente. Com ele uma força retrógrada e outra progressiva: a volta à repressão familiar cristã tradicional e o avanço capitalista, integrado aos EUA. Isso somado à clemência dada, em caráter restrito, às manifestações culturais esquerdistas da intelectualidade, já que ela não ameaçava o projeto capitalista dominante (pelo menos até 68 assim se deu); tudo isso junto, os anacronismos, as incongruências, é que alimentariam o movimento tropicalista. Para haver imagem tropicalista, arrisca Roberto, “é essencial que a justaposição de antigo e novo – seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – componha um absurdo”[2], um registro estético da situação esdrúxula do país, em forma de alegoria. Sugere considerar essa linha infértil e ‘de classe’, ao contrapô-la à do método Paulo Freire, que juntaria o arcaísmo rural a métodos modernizados e conscientes de educação, resultando em algo possível e positivo.

Assinala outras manifestações que, antes e paralelamente a isso, desenvolvem a tendência ao didatismo simplório e à redundância, apesar de manter uma função de reafirmação da postura inconformada. A necessidade de falar para as massas, ainda que longe delas, e principalmente em defesa das massas é que levou à primazia das formas populares; música, teatro, cinema e jornalismo; em detrimento da literatura. A composição das manifestações teatrais sintonizadas nessa atmosfera ‘festiva’ começou por aliar a música ao teatro, e o exemplo dado foi o do Arena. Inicialmente com o espetáculo ‘Opinião’, seguido do ‘Arena conta Zumbi’ e ‘Arena conta Tiradentes’, o grupo teve o mérito de aproximar o teatro do público jovem universitário, despindo o palco da palavra ‘bem construída’, de atores sofisticados tecnicamente, promovendo didatismo e distanciamento Brechtiniano na música, encenação e interpretação. No entanto, apesar de louvar as intenções revolucionárias e do poder entusiasmante do grupo, o ensaísta desaprova, nessas peças, a ausência de crítica ao Populismo de esquerda, já desmascarado pelos fatos políticos.

Com proposta diversa, identificado com a linha tropicalista, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa é também destacado, como tentativa de “desagregação burguesa” pela agressividade direta do elenco dirigida ao público, seja através de palavras, seja de agressividade física mesmo. Utilizando a riqueza de sugestões que ‘O Rei da Vela’, de Oswald de Andrade, oferecia; o Oficina formula uma estética do insulto, de forma a levar a platéia a projetar medos e identificar-se com o agressor, deixando uma sensação de desmoralização geral. Segundo Schwarz, apesar da válida exposição do descrédito da crise burguesa, a proposta ‘choque’ de Zé Celso não se concretiza como realmente política e mobilizadora, nem sequer essencialmente artística, segundo os critérios do ensaísta marxista: “não tem linguagem própria, tem que emprestá-la sempre de sua vítima, cuja estupidez é a carga de explosivo com que ele opera”[3].

Concluindo, Roberto analisa a então presente situação da cultura, no ano de 70, lamentando o endurecimento das forças armadas, a censura, prisões, torturas, AI5, desagregação das instituições de ensino, e outras medidas que pretendiam, entre outras coisas, por fim à luta armada que começara a pipocar. Lamenta que a resistência ‘populista’ e ‘popular’ da esquerda tenha contribuído para produzir a “cristalização de uma nova concepção do país”[4]. Demonstra, por outro lado, que mudanças, apesar de difíceis seriam possíveis. Parecia acreditar que a ideologia de consumo imposta pelos militares num país miserável dificilmente seria assimilada, mas em nota posterior ao ensaio alerta seu equívoco de prognóstico. O que chama atenção para seu amargo otimismo é a forma como fecha, indicando o caminho do padre de Quarup como única forma viável de futuro social justo: sacrificar todos os privilégios de sua classe na aliança com o povo.

O quadro desenvolvido por Schwarz, longamente parafraseado acima, sua análise crítica inteligente, minuciosa, dá ao leitor atual um entendimento complexo do momento revelado, colorido pela rica seleção de exemplos e pela sua armação numa prosa de grande fluência e impacto. A despeito desse farto registro e de seu exigente convite à reflexão e atuação, incomoda um pouco o julgamento artístico ali presente surgir sempre em função de uma utilidade política. É coerente, levando-se em conta a sua posição marxista como crítico e o fato dos artistas mencionados terem realmente se mobilizado em torno dessa função, acreditando nela. Tudo indica que, na cultura brasileira, esse tenha sido um momento culminante do engajamento político em grande escala, e é frustrante reconhecer que, apesar disso, as injustiças prosseguiram inabaláveis e em escala geométrica. Está claro que Roberto priorizou a investigação dos ‘equívocos’ que acompanharam as intervenções culturais politizadas e seus efeitos, na tentativa de vislumbrar a possibilidade de uma saída diferente. Ainda assim, sinto falta de algumas considerações adicionais que, no ensaio, poderiam lançar luz sobre o fato de que os caminhos artísticos criados a partir de experiências ‘politicamente fracassadas’ vão além desse aspecto. Do ponto de vista humano, estético, de costumes, a tropicália e as incursões teatrais dos anos 60 não devem ser julgadas somente por esse parâmetro.

É claro que eu estou em posição vantajosa para reivindicar uma análise mais relativizante e talvez dotada de um outro tipo de otimismo, já que estou trinta e sete anos avançada no tempo em relação à voz de Schwarz nesse trabalho. Hoje, somos levados a acreditar que, mesmo se o Brasil tivesse se embrenhado numa experiência socialista ou outra possível, as misérias continuariam as mesmas, só que diferentes. Minha leitura vibrou com a revelação de um universo intenso, esquematizado de forma lúcida, talvez em demasia. Precisei recorrer à sensibilidade de uma participante indireta daqueles tempos para compensar meu vazio. Clarice Lispector falava que não acreditava no poder de mudança social e política da arte. Nem da sua, nem da de outros. Apesar disso, dizia ela que escrevia por compulsão, por necessidade vital. Em suas palavras:

“Lerner: Então por que continuar escrevendo, Clarice?
Clarice: E eu sei? Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro, não é?”[5]

A escritora sugere que se a arte não é capaz de modificar o sistema, modifica certamente o próprio artista que se transmuta no fazer. A meu ver, modifica também, ao menos subjetivamente, aqueles que estão receptivos à arte, ao ter redimensionado o seu modo de conceber e interagir com o mundo sensível. É claro que, no caso dos artistas rebeldes dos anos 60, eles queriam de fato alterar as coisas, mas junto com isso queriam também ‘desabrochar’ como vozes de uma geração. Aos que pensam que o exemplo dado neste caso pode ser infeliz, por ter vindo de alguém largamente considerada alheia a questões políticas e portanto ‘individualista’; estudos da obra de Clarice têm recentemente demonstrado que, por vias indiretas, seu trabalho possui mais teor revolucionário conceitual do que aparenta, além da inegável renovação formal. De qualquer modo, se as crenças de uma artista como ela não forem as mais adequadas para sugerir, naquele contexto, a existência de um poder transformador da arte, aquém ou além da condição de cidadão participante, pode-se também analisar, abaixo, uma declaração que toca nesta questão, vinda de um dos protagonistas do momento rebelde que nos interessa:

“há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do que fizemos, quando quase nada fizemos além de chamar a atenção para o fato de que temos um dever de grandeza ... Mas ainda acho que eu estar hoje aqui, dizendo o que disse, porta, em combinação rítmica com o resto de minhas atividades, algum teor de poesia não de todo desprezível. E essa poesia quer dizer, pelo menos, que há graça em existirmos.” [6] (Caetano Veloso)
[1] SCHWARZ, R. Cultura e Política 1964-1968 in O pai de família e e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978, 2ª edição, p 63.
[2] Idem – p 76.
[3] Idem Ibidem – p 88.
[4] Idem Ibidem. p 92.
[5] LERNER, J. “A última entrevista de Clarice Lispector”. Shalom. São Paulo: junho-agosto de 1992.
[6] VELOSO, C. “Diferentemente dos Americanos do Norte” in Caetano Veloso O Mundo Não é Chato (org: Ferraz, E.). São Paulo: Cia das Letras, 2005.