quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Desmaio






















DESMAIO
Letra e música de Cecilia Furquim, apresentada no Sarau 'Chama Poética: Da Alegria'; sexta, dia 7/12/2007, às 20h, na biblioteca Alceu de Amoroso Lima. Acompanhamento de Éder Melgar.


Cuidado que eu sou
Cuidado que eu

Eu pairo, eu caio
Sereno de maio
e na madrugada
meu bem não me deixa dormir.

Eu sou do meio

de maio das mães
das gordas cadeiras
de manhas e mamas leiteiras.

Severa me interno
na mágoa do rio
e muda de inverno
me planto só meia saída



Sandália arrastada
e dália na sala
Desfolha-me a malha voraz

Sonada na cama
e de camisola
eu bailo de banda, sou nada

mas que malcriada
criada da casa
na tortura sua eu suo

Cuidado que eu sua
Cuidado que eu

Sereno de maio
Ser nó e desmaio
E na madrugada
Meu bem já me deixa dormir.




imagem retirada de: http://www.estacaocapixaba.com.br/textos/folclore/gsn/roda/sereno.html

Dream a little dream of me
















imagem retirada do site:

Duas versões diferentes da mesma música:


DREAM A LITTLE DREAM OF ME
Música: Wilber Schwandt e Fabian André - Letra: Gus Kahn

Stars shining bright above you
Night breezes seem to whisper "I love you"
Birds singing in a sycamore tree
Dream a little dream of me.

Say nighty-nighty and kiss me
Just hold me tight and tell me you'll miss me
While I'm alone and blue as can be
Dream a little dream of me.

Stars fading but I linger on dear
Still craving your kiss
I'm longing to linger till dawn dear
Just singing this.

Sweet dreams till sunbeams find you
Sweet dreams that leave all worries behind you
But in your dreams whatever they be
Dream a little dream of me.




SONHO UM SONHO A ME ENVOLVER
Tradução e versão: Cecilia Furquim
Apresentada no sarau 'Chama Poética: Longa é a arte, tão breve a vida'; na biblioteca Alceu Amoroso Lima, no dia 9 de novembro, às 20 horas. Acompanhamento no violão de Marcelo Américo.


Estrelas luzem chama
A brisa vem dizer que te ama
Os pássaros cantando no ipê
Sonho um sonho a me envolver.

Boa noite, vem me afaga.
Me beija e diz que eu faço falta
Enquanto estou sozinha a sofrer
Sonho um sonho a me envolver.

Estrelas se vão, mas eu fico
Querendo o teu mel
No canto pedindo o meu brilho
Em claro céu.

Sonhos doces, raios laçam
Sonhos doces, onde a calma abraça
Vem sopra nos teus sonhos pra ter
Sonho um sonho a me envolver.





SONHO UM SONHO SÓ PRA MIM
Tradução e versão de Beto Furquim

O brilho das estrelas
A brisa que me assopra: te amo
Uirapuru no pé de açai
Sonha um sonho só pra mim

Me beija, noite alta
Me abraça e me promete saudade
Sozinho essa tristeza sem fim
Sonha um sonho só pra mim

Estrelas cansadas desmaiam
Mas eu não dormi
Um beijo meus lábios ensaiam
Cantando assim.

Um raio de sol flagra
Um sonho tão bonito que acaba
Mas seja lá o que sonhes enfim
Sonha um sonho só pra mim.





En saio coisa: João Gilberto e Anton Webern -







Resenha apresentada em Outubro de 2007 na disciplina: ‘Literatura e música no Brasil’; ministrada pelo professor José Miguel Wisnik.



EN SAIO COISA


No texto “João Gilberto / Anton Webern” [1], o ensaísta, tradutor, crítico e poeta concreto Augusto de Campos celebra a invenção na música popular inventando um ensaio crítico que sai da convencional prosa-uninarrada-contínua. Ao comentar o gênero de seu trabalho, denomina-o “coisa” [2]. Ela foi publicada no livro ‘Balanço da bossa e outras bossas’, que por sua vez é uma republicação da obra ‘Balanço da Bossa’ (com doze textos), acrescida de mais dezenove textos. A segunda edição foi lançada em 1974, enquanto a primeira havia saído em maio de 1968, em plena efervescência tropicália. Nesse acréscimo, o autor (in)completa um registro reflexivo do que de mais relevante e inovador se havia produzido na música popular e seus pontos de contato com a música erudita de vanguarda. Como ele mesmo afirma no último texto ‘Balanço do balanço’, ao buscar a captação viva de algo presente e em constante mutação, não poderia enquadrar os acontecimentos daquele momento numa reflexão acabada, mas poderia perseguir os preceitos de Ezra Pound no reconhecimento das ‘news that stays news’ (notícias que permanecem novidade). Assim o fez. Lido hoje, 2007, o livro nos remete aos anos bossa nova - tropicália sem deixar de sugerir uma conexão com o que hoje se faz ou se desfaz na MPB.

O ensaio/coisa que pretendo analisar é o penúltimo texto da obra, e gira em torno da ‘notícia-contínua-novidade’ de dois músicos considerados pelo autor inventores por excelência. Um é o austríaco Anton Webern que, junto com Schoenberg e Alban Berg, revolucionou a música erudita do século vinte; o outro é João Gilberto, que revolucionou a MPB com a BN, seu jeito de cantar cool, os efeitos despojados e tensos, desconcertantes do seu violão. No ensaio, Augusto como que sumariza o que já, no livro, havia sido dito anteriormente sobre Webern, Caetano, Lupicínio, João especialmente, e outros. A ‘coisa’ denuncia, já na composição gráfica do título, o entrelaçamento das escolhas de João e Webern, a fusão do erudito e do popular na MPB. Isso vem como forma e conteúdo juntos não só no título, mas no desenvolvimento do texto, como deve ser uma verdadeira síntese.

Ao falar da vanguarda musical dodecafônica, que suprime a hierarquia das notas da escala cromática; e da vanguarda sofisticada dissonante da BN, reduzida de contrapontos; Augusto mistura suas considerações às de outros comentadores dos músicos inventores. Retirou-as de cartas, biografias, entrevistas, depoimentos variados, apresentados sempre com letra ‘caixa baixa’ à la Cummings. Insere também, numa mescla semiótica, trechos de partituras, estórias em quadrinhos, poemas; trechos de músicas de Lupicínio, Caetano, João Gilberto (músicas suas por autoria ou interpretação); tudo isso de forma caótica, desordenada, mas com um espantoso efeito unificador. Não há tensão seguida de relaxamento no texto colagem, não há ênfases; os trechos se ligam soltos, cheios de cortes internos, com se fossem versos, mas prosaicamente distendidos. Quebrando a linearidade, o autor chama atenção para as unidades que compõe a estrutura das prosas, assim como os músicos focalizados faziam com as notas e timbres da composição. Tomando um exemplo ao acaso:

“a mente de webern foi sempre radical;
partia imediatamente
para as últimas conseqüências
não há de fato, nada
na música de Webern
a não ser últimas conseqüências” (robert craft)[3]

A apropriação acima, como ‘ready made’, conferiu a ‘função poética Jakobsiana’ na mais despretensiosa fala. A nova disposição faz saltar aos olhos rimas toantes (mente/sempre); paronomásias encadeadas em (mente/imediatamente; partia/para); espelhadas (não há / na / a não); assonâncias (não há de fato nada) e o encadeamento de “últimas conseqüências”. O texto passa a ter ritmo, espaço, som! Como a música de que fala.

As considerações do autor, somadas às citações alheias, oferecem insights, não só ao entendimento da obra e das personalidades de Webern / João, como também sua inter-influência no trabalho de revalorização de Lupicínio, na antropofagia tropicalista de Caetano e na poesia verbivocovisual de Augusto. A radicalização do pouco que é muito, a nota só, sutileza, contenção, brevidade, espacialização, rigor quase obsessivo. A todo tempo isso é reafirmado de um ponto de vista diferente. Costurado também pela denúncia da indiferença que foi e ainda é, de certa forma, dada à obra do compositor Austríaco, bem como à do Gaúcho de ‘Volta’. Por tabela, também deflagra a pouca aceitação do público diante das incursões mais radicais de Caetano e da poesia concreta, constantemente acusada de difícil e distante.


























A trança de signos elaborada no ensaio/coisa começa com uma foto de Webern e Berg (acima), seguida de um trecho de Stravinsky, que a descreve: “webern, sapatos de tipo camponês, coberto de barro”. Termina com uma foto de João Gilberto, emoldurada acima por uma pergunta e abaixo pela resposta: “e o que é que isso tudo tem a ver com João Gilberto?” / “uma sílaba”. Um fecho aberto, que sugere mas não diz. Deixa pistas muito tênues impedindo uma interpretação assertiva. O que pode ser essa sílaba? É o ‘BER’, que figura nos dois nomes tematizados? É possível que ela seja parte da palavra SÍlaba, o ‘SI’, que já havia sido lançado no ponto em que Robert Craft afirma quase sempre haver sons de SIno[4] evocados na obra de Webern. Já lançado na frase/verso monóstica “SIna e Sino”; no trecho (sobre o) “assasSIno de Webern, chamado Bell (isto é, SIno)”. Em várias palavras utilizadas ao longo do texto: SIlêncio, SIgnificando, SI mesmo, imposSÍvel, impresSIonado, Simples. No fato de que a foto de João o apresenta com a cabeça curvada para dentro, apoiada num dos punhos, os braços cruzados, pensando, enSImesmado. Na movimentação SIncopada de ‘Desafinado’. Na nota ‘SI’ de ‘Samba de uma nota só’.

Tudo isso estaria colocando os artistas citados (Caetano, Lupicínio revisitado, o próprio Augusto) partindo da simplicidade dos sapatos camponês de Webern, fertilizados de invenção pelo barro que os envolve; para então levarem adiante a música nova numa espiral multisígnica que desemboca na (ou devora a) forma introspectiva ‘João Gilberto’?

Unanswered question![5]

[1] Campos, Augusto. “João Gilberto / Anton Webern” in BALANÇO DA BOSSA E OUTRAS BOSSAS (com Brasil Rocha Brito, Julio Medaglia, Gilberto Mendes), São Paulo: Perspectiva, 2005, pp312 a 331)
[2] “Em `E outras bossas`, entremeados com estudos, crônicas, comentários e entrevistas sobre música popular, estão alguns trabalhos que fiz sobre música erudita moderna, com algumas infiltrações poéticas, tudo culminando com a “coisa” que escrevi sobre Webern/João Gilberto.” (CAMPOS: 2005 p 347).
[3] Campos: 2005, p330.
[4] Grifos meus
[5] Citação de obra homônima de Charles Ives, que segundo Augusto é “uma das mais extraordinárias páginas da música contemporânea”.

A CULTURA REBELDE DOS ANOS 60 - pelo olhar marxista






Resenha apresentada em Outubro de 2007 na disciplina: 'Literatura e Música no Brasil', ministrada por José Miguel Wisnik.


A CULTURA REBELDE DOS ANOS 60
PELO OLHAR MARXISTA


O momento político e cultural, que se deu entre 1964 e 1969 durante a ditadura, é analisado de forma admirável no ensaio “Cultura e Política”, de Roberto Schwarz, conhecido ensaísta e professor da Unicamp. Roberto assinala as diretas relações sociológicas com a produção cultural do país, especialmente o TROPICALISMO e a produção teatral de grupos como o ARENA e o OFICINA. Antes de lançar alguns comentários, gostaria de parafraseá-lo.

Começa apontando, como anomalia, entre os anos mencionados acima, a manutenção da hegemonia cultural de esquerda num governo autoritário de direita; o que se explica pelo histórico socialista no país: “forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes”[1]. Segundo ele, de 50 em diante, influenciado pelo Populismo, o Partido Comunista alimentou a ilusão de que; através do anti-imperialismo e uma busca limitada às reinvindicações salariais, de reforma agrária e política externa; teria o apoio da burguesia industrial progressista contra os setores arcaicos, agrários das classes dominantes. Essa característica teria feito com que a ideologia de esquerda se fortalecesse superficialmente. No momento em que; nesse clima, ultrapassando um pouco as limitações demagógicas populistas; os camponeses, operários e outros setores da massa popular começam a se movimentar, a direita cria “o fantasma da socialização” e o golpe militar se dá diante da esquerda impotente. Com ele uma força retrógrada e outra progressiva: a volta à repressão familiar cristã tradicional e o avanço capitalista, integrado aos EUA. Isso somado à clemência dada, em caráter restrito, às manifestações culturais esquerdistas da intelectualidade, já que ela não ameaçava o projeto capitalista dominante (pelo menos até 68 assim se deu); tudo isso junto, os anacronismos, as incongruências, é que alimentariam o movimento tropicalista. Para haver imagem tropicalista, arrisca Roberto, “é essencial que a justaposição de antigo e novo – seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – componha um absurdo”[2], um registro estético da situação esdrúxula do país, em forma de alegoria. Sugere considerar essa linha infértil e ‘de classe’, ao contrapô-la à do método Paulo Freire, que juntaria o arcaísmo rural a métodos modernizados e conscientes de educação, resultando em algo possível e positivo.

Assinala outras manifestações que, antes e paralelamente a isso, desenvolvem a tendência ao didatismo simplório e à redundância, apesar de manter uma função de reafirmação da postura inconformada. A necessidade de falar para as massas, ainda que longe delas, e principalmente em defesa das massas é que levou à primazia das formas populares; música, teatro, cinema e jornalismo; em detrimento da literatura. A composição das manifestações teatrais sintonizadas nessa atmosfera ‘festiva’ começou por aliar a música ao teatro, e o exemplo dado foi o do Arena. Inicialmente com o espetáculo ‘Opinião’, seguido do ‘Arena conta Zumbi’ e ‘Arena conta Tiradentes’, o grupo teve o mérito de aproximar o teatro do público jovem universitário, despindo o palco da palavra ‘bem construída’, de atores sofisticados tecnicamente, promovendo didatismo e distanciamento Brechtiniano na música, encenação e interpretação. No entanto, apesar de louvar as intenções revolucionárias e do poder entusiasmante do grupo, o ensaísta desaprova, nessas peças, a ausência de crítica ao Populismo de esquerda, já desmascarado pelos fatos políticos.

Com proposta diversa, identificado com a linha tropicalista, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa é também destacado, como tentativa de “desagregação burguesa” pela agressividade direta do elenco dirigida ao público, seja através de palavras, seja de agressividade física mesmo. Utilizando a riqueza de sugestões que ‘O Rei da Vela’, de Oswald de Andrade, oferecia; o Oficina formula uma estética do insulto, de forma a levar a platéia a projetar medos e identificar-se com o agressor, deixando uma sensação de desmoralização geral. Segundo Schwarz, apesar da válida exposição do descrédito da crise burguesa, a proposta ‘choque’ de Zé Celso não se concretiza como realmente política e mobilizadora, nem sequer essencialmente artística, segundo os critérios do ensaísta marxista: “não tem linguagem própria, tem que emprestá-la sempre de sua vítima, cuja estupidez é a carga de explosivo com que ele opera”[3].

Concluindo, Roberto analisa a então presente situação da cultura, no ano de 70, lamentando o endurecimento das forças armadas, a censura, prisões, torturas, AI5, desagregação das instituições de ensino, e outras medidas que pretendiam, entre outras coisas, por fim à luta armada que começara a pipocar. Lamenta que a resistência ‘populista’ e ‘popular’ da esquerda tenha contribuído para produzir a “cristalização de uma nova concepção do país”[4]. Demonstra, por outro lado, que mudanças, apesar de difíceis seriam possíveis. Parecia acreditar que a ideologia de consumo imposta pelos militares num país miserável dificilmente seria assimilada, mas em nota posterior ao ensaio alerta seu equívoco de prognóstico. O que chama atenção para seu amargo otimismo é a forma como fecha, indicando o caminho do padre de Quarup como única forma viável de futuro social justo: sacrificar todos os privilégios de sua classe na aliança com o povo.

O quadro desenvolvido por Schwarz, longamente parafraseado acima, sua análise crítica inteligente, minuciosa, dá ao leitor atual um entendimento complexo do momento revelado, colorido pela rica seleção de exemplos e pela sua armação numa prosa de grande fluência e impacto. A despeito desse farto registro e de seu exigente convite à reflexão e atuação, incomoda um pouco o julgamento artístico ali presente surgir sempre em função de uma utilidade política. É coerente, levando-se em conta a sua posição marxista como crítico e o fato dos artistas mencionados terem realmente se mobilizado em torno dessa função, acreditando nela. Tudo indica que, na cultura brasileira, esse tenha sido um momento culminante do engajamento político em grande escala, e é frustrante reconhecer que, apesar disso, as injustiças prosseguiram inabaláveis e em escala geométrica. Está claro que Roberto priorizou a investigação dos ‘equívocos’ que acompanharam as intervenções culturais politizadas e seus efeitos, na tentativa de vislumbrar a possibilidade de uma saída diferente. Ainda assim, sinto falta de algumas considerações adicionais que, no ensaio, poderiam lançar luz sobre o fato de que os caminhos artísticos criados a partir de experiências ‘politicamente fracassadas’ vão além desse aspecto. Do ponto de vista humano, estético, de costumes, a tropicália e as incursões teatrais dos anos 60 não devem ser julgadas somente por esse parâmetro.

É claro que eu estou em posição vantajosa para reivindicar uma análise mais relativizante e talvez dotada de um outro tipo de otimismo, já que estou trinta e sete anos avançada no tempo em relação à voz de Schwarz nesse trabalho. Hoje, somos levados a acreditar que, mesmo se o Brasil tivesse se embrenhado numa experiência socialista ou outra possível, as misérias continuariam as mesmas, só que diferentes. Minha leitura vibrou com a revelação de um universo intenso, esquematizado de forma lúcida, talvez em demasia. Precisei recorrer à sensibilidade de uma participante indireta daqueles tempos para compensar meu vazio. Clarice Lispector falava que não acreditava no poder de mudança social e política da arte. Nem da sua, nem da de outros. Apesar disso, dizia ela que escrevia por compulsão, por necessidade vital. Em suas palavras:

“Lerner: Então por que continuar escrevendo, Clarice?
Clarice: E eu sei? Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro, não é?”[5]

A escritora sugere que se a arte não é capaz de modificar o sistema, modifica certamente o próprio artista que se transmuta no fazer. A meu ver, modifica também, ao menos subjetivamente, aqueles que estão receptivos à arte, ao ter redimensionado o seu modo de conceber e interagir com o mundo sensível. É claro que, no caso dos artistas rebeldes dos anos 60, eles queriam de fato alterar as coisas, mas junto com isso queriam também ‘desabrochar’ como vozes de uma geração. Aos que pensam que o exemplo dado neste caso pode ser infeliz, por ter vindo de alguém largamente considerada alheia a questões políticas e portanto ‘individualista’; estudos da obra de Clarice têm recentemente demonstrado que, por vias indiretas, seu trabalho possui mais teor revolucionário conceitual do que aparenta, além da inegável renovação formal. De qualquer modo, se as crenças de uma artista como ela não forem as mais adequadas para sugerir, naquele contexto, a existência de um poder transformador da arte, aquém ou além da condição de cidadão participante, pode-se também analisar, abaixo, uma declaração que toca nesta questão, vinda de um dos protagonistas do momento rebelde que nos interessa:

“há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do que fizemos, quando quase nada fizemos além de chamar a atenção para o fato de que temos um dever de grandeza ... Mas ainda acho que eu estar hoje aqui, dizendo o que disse, porta, em combinação rítmica com o resto de minhas atividades, algum teor de poesia não de todo desprezível. E essa poesia quer dizer, pelo menos, que há graça em existirmos.” [6] (Caetano Veloso)
[1] SCHWARZ, R. Cultura e Política 1964-1968 in O pai de família e e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978, 2ª edição, p 63.
[2] Idem – p 76.
[3] Idem Ibidem – p 88.
[4] Idem Ibidem. p 92.
[5] LERNER, J. “A última entrevista de Clarice Lispector”. Shalom. São Paulo: junho-agosto de 1992.
[6] VELOSO, C. “Diferentemente dos Americanos do Norte” in Caetano Veloso O Mundo Não é Chato (org: Ferraz, E.). São Paulo: Cia das Letras, 2005.

domingo, 12 de agosto de 2007

Zéfiro

Texto de Cecilia Furquim
Ilustrações (da Internet): Francesco Sgroi
Para Gabriela













Minha mãe me disse
que na velha Grécia
tinha um tal de Zéfiro,
que levava gente
suave, mansinho,
de um lado pro outro

Nos seus longos braços,
seu colo de vento,
você nem sentia:
já tinha chegado






















Eu bem que pensei:
será que é possível
chamar esse Zé
pras bandas de cá?

Na cama, de noite,
encostei o corpo
no meu travesseiro
e contei pra ele
meu louco desejo:































Seu Zéfiro, ouve:
pega uma carona
em boa corrente
e vem pro Brasil.

Me leva pro alto,
eu quero planar
no imenso do céu,
poder ver a lua
e dar oi pro sol,
escapar da chuva
desviar dos montes,
depois pegar onda
na estrela cadente.

























No dia seguinte,
esperei pra valer,
mas ele não veio
aqui me pegar.

Pensei que talvez
desejo de um só
não fosse bastante,
tão longa viagem
não vai compensar.
























.
.
.
.
Liguei pra vovó,
e disse pra ela
também desejar:

Seu Zéfiro leva,
me leva pra era
dos meus ancestrais.
Me mostra a fazenda
e a grande família,
unida na mesa,
contando sua lida.
























.
.
.
.
Me põe já num galho,
com a mão lotada
de jabuticaba.

Depois, com a moçada
treinando a paquera
no footing da praça.

E em hora escura,
me põe a girar
no centro da pista
do baile de gala.
























Chamei a babá
e disse pra ela
também desejar:

Seu Zéfiro leva,
me leva pra terra,
e traz o meu homem,
o filho da Dita,
meu Zé violeiro.

Vem Zéfiro, zela
pela nossa sorte,
pra terra nos dá
tudo que se come.

Sussurra baixinho
meu tanto de amor,
traz ele pra junto,
pra gente gozá
o sabor da vida
e o som da viola.

























.
.
.
Depois à noitinha
falei pro papai
também desejar:

Seu Zéfiro leva,
me leva pro palco,
me tira da roda
de fazer dinheiro

Coloca minha voz
num bom microfone,
e todos amigos,
ligados, curtindo
a banda de rock.

Me deita na rede
no fim de semana,
rezando umas graças
e fazendo troças
pras saias da casa.























.
.
.
.
.
Faltava então
falar com a mamãe.
Agora é sua vez:
com o seu desejo
ele não tem jeito
de negar a todos:

Seu Zéfiro, leva
me leva pra um ponto
um ponto de luz
em fala ou em letra
que sirva pro povo
melhor entender
o seu desnorteio
e ajude a tomar
um caminho novo

Seu Zéfiro, lança
a tua aragem
em minha linguagem
e eu possa com isso
formar uma trança
que enlace os sentidos
nos fios da razão.
















E assim esperamos
o vento do oeste
soprar nossa sede,
suave, mansinho.

Suave, mansinho,
não dá pra contar
o tempo do Zéfiro.

Em colo de vento
a gente nem sente
o seu movimento.

Balança de um jeito
gentil, delicado,
eu mal me dei conta
que fui transportado.












FIM

sábado, 11 de agosto de 2007

nós

































Cecilia Furquim - agosto de 2007


quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O Si














“Mas quem é Narciso? Narciso é o ser ou estar que prova e aprova a si próprio. Narciso é a instância do ser ou estar que prova e aprova o próprio ser ou estar.”
Antonio Cícero

(afirmação que esclarece sua definição de ‘dança narcísica’ ao se referir ao trabalho de Hèlio Oiticica: ‘Parangolé’)


O SI
O Sicrano investiga
o provar e o aprovar-se
do Narciso

Com uma ponta de juízo
e outra de riso

Inseguro da inocência
e do sarcasmo

que se prende e aprende-se
como preço e apreço
do Sicrano condoído
e invejoso do Narciso.


Cecilia Furquim

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Sarau Periferias





















(Poema visual feito para o sarau por Cecília Furquim, utilizando imagem de Francesco Sgroi)


Dia 02/06/2007 na Casa das Rosas, às 18 horas
Apresentação de poemas, canções e dramatizações


REGISTRO DO SARAU

Apresentação:

O sarau temático que está sendo proposto agrupou um número grande de criadores da poesia, da música e do teatro; contando também com representantes da criação na prosa e na imagem.

Na casa, que representa historicamente uma arquitetura de elite, na avenida que é o centro financeiro do país, na cidade e estado mais ricos da América do Sul, no país que é.... bem... no país que é uma das periferias do mundo, do mundo de prestígio. Aqui no Brasil, analisando pelo aspecto do poder, querendo ou não, de frente, de lado ou de costas: somos todos periferia.

E para cantar o ‘ser periferia’, artistas se uniram, em sua grande maioria com o propósito, não de interpretar criadores já consagrados, mas de apresentar trabalhos próprios.

Ao público oferecemos então nosso canto. Canto dividido em cantos, multiplicado em cantos. Cantos múltiplos de 35 artistas dirigidos às múltiplas periferias: periferia da alma, da religião, do amor, do sexo; periferia da identidade, da sociedade, da cidade, da linguagem, da arte. Cantos de tantas margens, beiras, bordas, orlas, pontas, cantos. Cantos de cantos!!!





CONVIDADOS (por ordem de entrada)

1º BLOCO:

Abertura: Marcelo Tápia (poeta, músico, tradutor e professor), acompanhado de seu filho e parceiro, o músico Daniel Tápia.
Outros poetas ligados a Casa das Rosas: Tom Carvalho. Lúcia Hiratsuka, Américo Bittar, Maria Luiza Palhas, Cecília Marinho (com Nice Pequena, Wesley Vieira e Roberto Crimber, do grupo Religare).

2º BLOCO

Serão apresentados trechos da peça ‘Mutatis’ pelo grupo Religare, grupo que acolhe ex-internos da Febem, num trabalho intenso e sério de educação e reintegração através da arte. Dirigida por Valéria Di Pietro, e encenada pelos atores: Peterson Xavier, Wesley Vieira, Fran de Lima, Nice Pequena, Willa Melo, Antonio Marcos, Marcely Ancelme, Bruna Veloso e Flavia Felix. A peça foi escrita por Peterson Xavier e Danilo Fernandes, e inclui canções de Edvaldo Santana.

3º BLOCO

Beto Furquim (músico e compositor); Beatriz di Giorgi (poeta); Fábio Don (músico); Deborah Rebello (poeta); Monahyr Campos e Tiely Queen (músicos); Simone Paulino (escritora); Éder Melgar e Márcia Casseb (músicos); Émerson Caperbat (ator); ‘Tupinambá e seus Turebas’ (banda de Funk Rock).

Fotografia e montagem: Rita Catunda
Poema visual: Beto Furquim

TRABALHOS

Seguem, abaixo, vários dos trabalhos apresentados (por ordem de entrada):

Rita Catunda























- As montagens e fotos de Rita Catunda foram feitas especialmente para o Sarau e foram expostas na entrada da Casa das Rosas.



* * *

Marcelo Tápia

o reto


para a vida ser reta
é preciso abandonar
todas as curvas


para a vida
ser reta é preciso abandonar
todas as curvas


para a vida ser reta é preciso abandonar
todas as curvas


para a vida ser reta é preciso abandonar todas as curvas




segunda classe


de manhã
média com pão e manteiga
no almoço
dieta de quantia média
o dia todo
média com o chefe
pra não ficar
abaixo da média dos ordenados
no estacionamento
taxa de carro médio
meio tanque cheio
a volta pra casa
em velocidade média
rádio ligado
em ondas médias
na chegada
metade uísque metade água
média mensal do filho na escola
a cara metade fala de ofertas
com 50% de abatimento
novela o divertimento
(gosta daquela entre a das 6 e a das 8)
depois do banho morno
panos quentes nos desentendimentos
um coito de meia hora
pau tamanho médio
meio duro, gozo mediano
deitado de meias na metade da cama
o jornal da tv: mass-media
pra ficar por dentro da vida



Marcelo Tápia é poeta, músico, tradutor e professor do ‘curso de criação e tradução de poesia’ na Casa das Rosas. Publicou, entre outros, os livros Primitipo (1982), O bagatelista (1985), Rótulo (1990), Livro aberto (1992), Pedra volátil (1996) e o volume de tradução A forja – alguma poesia irlandesa (2003). É integrante do grupo de música irlandesa Irish Dreams com dois Cds gravados, Irish Dreams, 2000, e Whiskey in the Jar, 2002. Tem se destacado desde 1987 na organização das comemorações do Bloomsday paulistano, homenagem anual ao escritor irlandês James Joyce. Colabora para uma coluna na revista cronópios (www.cronopios.com.br ) e publica textos literários na revista Mnemozine.


* * *

Lúcia Hiratsuka



Traduções de Haikais


Lúcia Hiratsuka é poeta, tradutora e ilustradora. No sarau leu traduções suas de haikais. Alguns de seus haikais, acompanhados de ilustrações utilizando a técnica de sumiê, podem ser apreciados na revista cronópios, no link:
Depois de se formar em Artes Plásticas, Lúcia pesquisou sobre os livros com imagens na Universidade de Educação de Fukuoka no Japão (1988-1989). Recebeu alguns prêmios nessa área: APCA’95, pela coletânea de Contos e Lendas do Japão, menção “Altamente Recomendável” da FNLIJ, 3o lugar no JABUTI 2006 (categoria ilustrações) pelo livro “Contos da Montanha”. Site: http://www.luciahiratsuka.com.br/ E-mail: l.kioko@terra.com.br

* * *

ABittar

Poema Recorrente

Assalta-me
De repente
Esse poema
Recorrente
Sobre a selva de pedra
Concreto e asfalto
Um poema
Que nunca termina
E nunca terminará
Volta e meia
Ele volta
Pra me perturbar
Então começo a escrever
Pra não me esquecer
Do que quero lembrar
É fácil falar
São Paulo
Não dorme
Nem pode parar
Dizem que aqui só tem
Tristeza, pobreza e miséria.
O que não é verdade
Todo mundo
Tem pressa
Vive num corre-corre
Atrás de emprego e trabalho
Porque é dura
A competição
São mais de dois milhões
De desempregados
Quase todos
Na mesma situação
Todo mundo está
Vendendo o almoço
Pra comprar o jantar
Você ri, mas, não tem graça não,
A realidade é bem pior
Do que se pode imaginar
Só quem
Passou fome sabe
O que é passar fome
Não adianta tomar água
Porque água
Não mata a fome
Água só mata a sede
Mas, São Paulo.
Não é só isso, não.
São Paulo também tem
Show e diversão
Parques espalhados
Pela cidade
Com várias atividades
Tudo de graça
É só procurar
Quem procurar
Há de encontrar
Com um pouco de sorte
E muita disposição
Ainda podemos
Nos darmos bem
Nesta cidade
Que é o coração
Da nação

Já passei frio
Já passei fome
Na cidade
Que não dorme
Já vi o contraste
Do bem e do mal
Já sei o que é
Ficar engarrafado
Numa enchente
Na Marginal
São Paulo é
Um pouco assim
Amor e ódio
Primavera e verão
Outono e inverno
Acontecem num só dia
Em qualquer estação
A pressa, o corre-corre.
Mexem com a emoção
Tudo é muito
Tudo é demais
São Paulo
É o mundo todo
Todo o mundo
Está representado
Aqui numa só cidade
São Paulo é bem assim
Não fale mal
De São Paulo
Perto de mim.

Mesmo Estando parado
Olhando pro nada
De algum lugar
Da Avenida paulista
Na escadaria cartão postal
Que tem a Antena mais alta
Que tem a sirene
Mais estridente
Que anuncia o meio dia
Todos os dias
Faça chuva ou faça sol
Parado espero
Agora, o farol abrir.
Pra seguir
Ir até o metrô
Pegar o trem
Saltar do trem
Ir mais além
Do terminal
Da Madalena
Não a Santa
Nem a outra
A Vila Madalena
E da Vila
A Lapa
A casa
O Apê
A Preta
O rango
O cigarro
O banho
A cama
O sono
O sonho
O acordar
E recomeçar
Tudo de novo outra vez
E outra vez...

Augusta
São João
Ipiranga
Consolação.
São Paulo não é só
Isso. Não.
Viaduto do Chá
Anhangabaú
Rua Direita
Praça Ramos
São Paulo não é só
Isso não.
Oscar Freire
Faria Lima
Vila Madalena
Avenida Paulista
Perdizes
Jardim Europa
Augusta
Cidade Jardim
São Paulo não é só
Isso. Não.
Freguesia do Ó
Brasilândia
Itaquera
Pirituba
São Miguel
Vila Tiradentes
Paraisopolis
São Paulo não é só
Isso não meu irmão.
Osasco
Guarulhos
Santo Amaro
Largo da Batata
Praça do Pombo
Alphaville
Carapicuíba
Ipiranga
Monumento
Ibirapuera
São Paulo
Não é só isso não
É mais...
É muito mais...
Já pensou em muito?
Põe um monte
Em cima desse muito
E ainda é muito mais...
Frio
Fome
Pobreza
Muito mais
Cada vez
Chegam mais
Bocas
Pra alimentar
Falar, reclamar,
Gritar,
Assim não dá!
Futebol,
Alegria do povo.
Carnaval,
Festa popular.
São Paulo,
Terra boa.
Terra da Garoa,
Água boa.
Enchente
Engarrafamento
Calor
Poluição
Confusão
Lixão.
Crianças carentes
Catando o pão
No lixo
Sabe...
Não queremos
Esmola
Queremos
Escola
Oportunidades
Iguais
Somos
Humanos
Seres
Humanos
Não somos
Invisíveis
Não adianta
Virar a cara
Fingir não ver
Não vai resolver
Somos um problema, sim.
Que tem solução.
Pare...
Pense...
Reflita...
Antes que...
A massa aflita.
Faça da mão
Uma arma
E da vida
Uma merda
Bem maior,
Maior do que já é!

Na cidade
Que não dorme
E não pode parar
Sentimos fome
Passamos frio
Conhecemos:-
Pobreza, tristeza, miséria.
Com pressa
No corre-corre
As ruas estão lotadas
Transito engarrafado
Calor, poluição, suor.
Calçadas apinhadas de gente
E mais, sempre chegam mais.
De todos os lados e lugares
Possíveis e imagináveis
De onde essa gente vem?
Todas as raças
A miscigenação
Todos os credos
Credo que confusão
Tudo é muito
Tudo é grande
Tudo é demais
E muito mais
Vem chegando
Bocas famintas
Para alimentar,
Falar, reclamar.
Gritar...Vai Vai
Rosas de ouro
Camisa verde
X-9
Leandro
Gaviões da Fiel
Nenê de Vila Matilde
Leandro
E nos feito bobos
Enquanto a garoa cai
A terra é boa
Dá de tudo
Mas não dá nada
Pois, só tem.
Asfalto e concreto
Plantados no chão
Barraco arrastado
Na enxurrada.
Colheita perdida
Safra perdida
Campo alagado
Bóia-fria
Sem trabalho
Sem cana
Para cortar
Sem café
Para colher
O campo se esvazia
E em outros campos
A bola rola
Morumbi
Canindé
Pacaembu
Estádios
Viram arenas
E os fiéis
Fiel
Independente
Mancha
Peixe
Macaca
Porco
Digladiam-se
Gritam gol!
Extravasando
Seus traumas
Suas neuras
Suas taras
Limpando a alma
Defrontam-se
Confrontam-se
Matam e morrem
Por nada
Por ninguém
Sem ganhar nada
Apenas o grito de:-
C a m p e ã o
Quando pensamos
Que tudo ia mudar
Pois a esperança
Venceu o medo
Quimera, sonho, utopia.
A esperança desabou
Durou tão pouco
E se acabou
O medo voltou
São Paulo não pode parar
São Paulo
Terra boa,
Nem garoa
Aqui tem mais
Mas tem poluição
No Pinheiros
E no Tietê
Tem falta dágua
Mas, assim mesmo.
Ainda tem
Um povo trabalhador
Um povo de bom coração
Porque se não fosse
Colocaria de vez
Uma arma na mão
E só pra comemorar
Qualquer desgraça
Porque é o que
Mais tem
Fazia uma revolução.
Só para comemorar...
Só pra mostrar
Pra essa nação
Que tem um povo bom
Mas disposto a tudo
Pra fazer desse País
Uma grande Nação

ABittar, Poeta dos grilos, define-se como poeta popular. Publicou poemas no livro ‘Antologia de Escritas’ (no 3) em Portugal, 2006. Seus trabalhos podem ser encontrados no site: http://bittarpoetadosgrilos.weblogger.com.br





* * *

Maria Luiza Palhas











uso indevido


hora do rush

calçada apinhada
pontos de ônibus
driblam
pontas de estoque
pingos de leite
adoçam
pingos de chuva


FREADA BRUSCA
susto
estrondo de guerra
ricochetes de latas e lutos
viscosidades que se misturam


a arma do crime
sai em disparada

12mai07




pelúcias



falta que faz
a vida que era
da chance
da casa sem tranca
da conta sem mora
dos contos nos cantos


falta que fez
a vida que vem
sem norte
só cortes
só dores
balaços
horrores


nem brinque


12mai07


lágrimas condensadas

“Pudim de Pão”, Asta Vanzodas


quanto doce já fiz
em meio à dor
quanta carne cortei
cheia de angústia
quanta fronha dobrei
chorando a cântaros
quanto ferro passei
a ferro e fogo


ouvi no rádio que
o amor é o melhor tempero

tem peito, essa gente
tem peito


24mar07




jardim perifa

só vim aqui pra dizê

eu tive 4 filho
3 que eu pari e o jorge,
que vivia lá em casa

um foi pro estado zunido
entregá essas coisa de delíver
um dia encheram ele de pancada disseram
só recebi um relógio quebrado

outro foi de bala perdida
tava trabalhano
como é que uma coisinha daquela
arrebenta com a cara de um
beijá aquela massa cor de sangue
só mãe pra tê estômago

nem bem parei de chorá
e vejo o otro escondendo um pacotinho
é do jorge mãe
mamou no meu peito dormiu no meu colo não podia me vê
que se agarrava na minha saia

jorge são jorge
virou a cabeça virou justiceiro virou traficante

forçô meu menino
a escondê muamba

sou mansa sou calma mas tudo tem limite peguei
joguei tudo no vaso
duas descarga
meu filho: tô morto
que morto que nada
então não valeu os banho
que dei
feijão de são benedito
cada fome uma concha
então não valeu
as história
os cuidado tô morto num dô dois dia
dois dia
entra 3 capuzado
bestêra conheço eles tudo
o jorge fuziu eu pulo na frente me voa no chão
saco imprestávi
lixo nojento

então esse foi de bala achada
ele nem pediu nem rezou
ficava me olhando
do caxão
com jeito de filho
com jeito de perdão

arrebentei o vaso
a machado custei tanto pra ter e não serviu pra nada


só vim aqui pra dizê
comprei otro
rosa nem gosto dessa cor

também comprei uma arma até que é fácil
robá um pacote

mandei recado
tô aqui sentada esperano
meu coração escuta mais
que meu zovido

ele entra
eu viro o pacote
e dô a descarga


só vim aqui pra dizê
já tô chegano meus filho

27mai07





- Maria Luiza Palhas é tradutora, dramaturga e poeta. Tem incursões na Dramaturgia com ênfase na chamada Literatura de Audioficção (textos dramatúrgicos roteirizados para suporte de áudio); traduções poéticas e poemas publicados no site ‘Cronópios’. Seu primeiro livro de poesia ‘Rompantes’ está em fase de revisão.


* O uso que os seus poemas fazem do espaço não pode ser reconstituído nesse blog.


* * *

Cecilia Furquim e Grupo Religare









































- Cecília Furquim é educadora, poeta e tradutora. No sarau apresentou seus poemas 'Íris', 'Pelo sim, pelo Cão', ‘Rosarruda’ e ‘Romper da Missa’, já registrados nesse blog. O primeiro está no grupo de 'poemas esparsos' e os demais no conjunto de poemas 'Colar de Contos'. Eles foram dramatizados no sarau pela autora e os atores do Grupo Religare: Wesley Vieira, Nice Pequena e Roberto Crimber.


* * *







Grupo Religare

































TRECHO DA MONTAGEM – ‘MUTATIS’




DO PONTO DE CULTURA DO RELIGARE
POEMAS E COREOGRAFIAS

Eu tenho um sonho, uma meta a seguir! Sonho em um dia ver a paz, a alegria, a vida, a perseverança, ver tudo de bom que o ser humano prega, mas não cumpre. Não quero ver mães chorando e jovens morrendo, não quero ver o moleque pedindo esmola no farol, nem o mendigo que perdeu o caráter, pelas circunstancias em que vive. Não quero mais ver o descaso com os aposentados, nem a tia que pela falta de emprego vende droga na favela, não quero mais ver as ruas banhadas de sangue, nem a criança inocente morrendo no assalto na troca de tiros.
Não quero mais ver aquela cena: Armas sendo engatilhadas, barulho de carros derrapando, vidros estilhaçados, tiros, gritos, choro, sangue, dor... E por que? Pelo descaso, a falta de oportunidade,e de infra-estrutura da periferia, culpa do modo de vida que o povo se acostumou a levar e culpa de nós mesmos, pois se nos ajudarmos, se nos unirmos, quem sacará as armas?
Meu sonho é ver informação, conscientização, cultura e arte, na vida de cada cidadão brasileiro. O caminho para meu sonho? É o caminho, da escuridão para a luz... O caminho para confundir os sábios que se dizem sábios, pois se fossem sábios, saberiam que não se deve julgar...
Sonho em ver um dia, a humanidade tirando sua máscara, e dando o máximo de si mesmo.
Eu vivenciei o crime, as drogas,a maldade, a morte. Quero viver coisas novas. O meu crime, será lutar,contra as estatísticas. A droga que vou vender, será o sorriso no rosto de cada criança. Minha maldade, será convertida em alegria, e a morte será vencida pela vida em minha vida...
Não sou exemplo, só quero ter coragem para que meu sonho mude a minha vida e a de muitos...
Eu tenho a família, tenho os parceiros, e tenho fé.
A minha paz é o resultado da guerra, guerra contra a maldade e a insanidade.
Eu sonho... Eu sonho em ser palhaço! Sou mais um palhaço triste, que pretende sorrir, representar e viver...
Meu nome é... (TIRAM A MÁSCARA E DIZEM MUITOS NOMES)
AUTOR – DANILO FERNANDES

A noite acabou. Não somos nada além do que somos. Todos os desejos saem de cena, para dar lugar à pura essência do ser humano, para dar lugar apenas ao que existe em nós desde que nascemos, mas quando chega o dia o cotidiano que nos corrói, invade nosso ser, as injustiças nos chocam, as horas nos sufocam e tudo, tudo o que o ser humano sonha se desfaz. Mas, para alguns, o sonho não se apaga e mesmo em meio ao dia, fortes como rocha, permanecem de pé.
Pessoas assim, são as imprescindíveis, pois lutam uma vida toda, e se realizam. Poucos imprescindíveis ainda resistem, pois a maioria, se acostumou com o dia, e se esqueceu do sonho que sonhou durante a noite.
AUTOR DANILO FERNANDES


O que aconteceu conosco? Nos acostumamos com a desigualdade?
Pensem, reflitam nessas humildes palavras, pois se o ser humano não refletir, nunca mais veremos o brilho da noite.
Que fazer quando tudo parece perdido?
Que fazer quando desaparece a esperança?
Como lutar se já não tem força? Como escapar das armadilhas do mundo?
Porque culpar a vida, se a vida é tão bela?
Porque preferir aceitar as mentiras? Será que é pior procurar a verdade? Será que esquecemos o que é a justiça?
Prefiro continuar acreditando nos sonhos, acreditar que ainda existe saída. Difícil mesmo é continuar como estamos: miséria, fome, crime, castigo, corações que não batem mais, sonhos que vão embora antes da hora, crianças deixadas pra trás.
É preciso fazer algo, mas o que?Sei que existe saída, e encontrá-la não é difícil. Todos temos consciência, todos temos coração. Usar a consciência e pensar com o coração.
Temos a fórmula, temos os ingredientes, agora, só é preciso saber como utilizar tudo isso. E para conseguir usar esta formula é preciso atitude. Quando isso for possível, não perguntaremos mais:
O que fazer?
AUTOR PETERSON XAVIER

Tem gente por aí vivendo que nem bicho
Fuçando comida na lata do lixo
Tem gente por aí vivendo que nem bicho
Fuçando comida na lata do lixo
Irmã gêmea da loucura
Dos gritos na noite escura
É gente dormindo debaixo do viaduto
E comendo a parte mais podre do fruto
É gente que nem parece que é gente
Mas que a gente sabe que é gente
É gente que nem parece que é gente
Mas que a gente sabe que é gente
Tem gente por aí vivendo que nem gente
Guardando seu ouro a unha e dente
Tem gente por aí vivendo que nem gente
Guardando seu ouro a unha e dente
Trancando as portas sem saber que na rua
Sangra exposta a ferida sua
É gente engordando por cima do Fruto
E atirando a parte mais podre no lixo no lixo
É gente que até parece que é gente
Mas que a gente sabe que é bicho
É gente que até parece que é gente
Mas que a gente sabe que é bicho
AUTOR EDVALDO SANTANA

Somos aqueles que acreditamos e lutamos por um ideal, e sem dúvida somos vencedores.
Sabemos que as batalhas da vida são muito difíceis, mas mesmo assim continuamos sonhando.
E graças a esses sonhos nos tornamos cada vez mais fortes para enfrentar essas batalhas e essas batalhas nos dão a oportunidade de acreditar nos nossos sonhos!
AUTOR PETERSON XAVIER

Pobre país, pacato, pacífico, perdido pela podridão do poder, por políticos passivos.
Política, policia, palácio, palanque...Pura palhaçada.
Presos pobres, pancada, porrada, pólvora, pânico, pescoços pisados, peito palpitando pouco perfurado pelos patifes.
Pelotões, piquetes! Pra quê? Pra proteger? Pra prender!
Prostitutas! Preço pago? Pouco.
Parem, pensem! Por que permanecem políticos pérfidos possuindo poder? Prepotentes, preconceituosos.
Pergunto: Por que permitimos? Parecemos pelegos. Precisamos parar. Protestar, pois parece piada.
Perecemos pouco a pouco. Procuremos panacéia. Precisamos pelejar, permanecer poeta.
Paralisar poderosos, palmatória para pilantras, poder para o povo pobre. Procuremos a paz.
Precisamos permanecer passeando pela penumbra?
Não!!!
AUTOR PETERSON XAVIER

Como o mundo mudou. Não vejo mais as crianças sujas na praça da sé.
Álcool e drogas parecem ter desaparecido.
Isso é estranho!
Policiais tratando as pessoas com educação, Políticos honestos, Onde está toda aquela podridão?
Isso é muito estranho!
Onde estão os malabaristas do farol? O que? Em uma escola de arte? Isso está cada vez mais estranho!
Eu conheço aqueles homens sentados no “café”. São mendigos que ontem imploravam por um pedaço de pão, e hoje se fartam em um café!
Isso com certeza é estranho, mas é muito bom!
Não ouço mais o “neoforró”, o “axé music”, onde está a éguinha pocotó?
Isto está muito bom, e muito estranho!
Esperem! Ouço um som diferente! Que barulho é esse?
(Todos simultaneamente imitam o som de um despertador: pipipipi)
Ops!É meu despertador! Já é hora de acordar. Sabia que havia algo de estranho!
Estava bom demais pra ser verdade!
AUTOR PETERSON XAVIER

Agora o menino dorme, na sua postura correta
Sozinho na noite enorme, como quem dorme de forma completa
Por não ter havido outro jeito senão crescer depressa e a esmo
Na escola da rua e ter feito de si o indefeso refém de si mesmo
Por não ter havido diferença entre as coisas da vida e da morte
Foi morto com bala de polícia, mas podia ter sido de crack ou de corte
(O elenco repete o texto a seguir diversas vezes como se fizessem uma oração)
Passarinho não cantou nessa madrugada, foi um jeito que ele arrumou pra ser camarada.
AUTOR EDVALDO SANTANA

(Música. Incelença o ator/atriz que está no centro e disse o ultimo texto iniciará uma coreografia os demais cantam)

Uma incelença entrou no paraíso, adeus irmão adeus, até o dia do juízo adeus irmão adeus, até o dia do juízo

(música. O elenco caminha pelo palco e posiciona-se para ultima coreografia)

Não tenho vergonha de dizer o que sou
Fui interno da FEBEM e hoje sou um vencedor
Eu um dia errei mas estou recuperado
Não faço as mesmas coisas que fazia no passado
Sou bem diferente do que a mídia mostra
Quer saber como mudei?
Essa é a resposta
Eu fiz curso de teatro e ganhei sabedoria
Feios, Sujos e Malvados, essa é a minha companhia.
Feios, Sujos e Malvados, Feios, Sujos e Malvados, Feios, Sujos e Malvados.
Aprendi a representar e também a respeitar
Aprendi o que é certo e pretendo não errar
Hoje sou ator e também sou cantor
E nunca deixei de ser sonhador
Sou ator, sou palhaço, disso tudo um pouco faço
Sou cantor malabarista, sou feliz eu sou um artista.
Faço tudo com esforço e também com muito amor,
E tenho muito orgulho pois eu sou um vencedor.
Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados.
Vivo com a arte dentro do coração
Feios, Sujos e Malvados essa é a minha união
Vivo no teatro e no meio musical,
Hoje a minha vida é muito mais legal.
Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados. Feios, Sujos e Malvados.
AUTOR PETERSON XAVIER








- O grupo ‘Religare’ nasceu dentro da FEBEM/SP nas atividades de teatro. Seus integrantes participaram das várias apresentações de NUM LUGAR DE LA MANCHA – AMORES E AVENTURAS DE DOM QUIXOTE. O espetáculo ‘MUTATIS’ conta a trajetória dos jovens envolvidos no grupo desde os “tempos sombrios” (quando em medida sócio educativa) até os “Tempos de Transformação” (a partir da arte). Seus questionamentos e seus sonhos traduzidos para a linguagem do teatro são um relato de coragem que gerou uma estratégia de enfrentamento à oferta da marginalidade.





* * *

Beto Furquim



















O poema visual acima foi feito especialmente para o sarau.



Margem

Errando só no rio
Nu corpo da canoa
Os olhos no vazio
E o oco só ressoa
O múrmurio do rio

Sondaia solta um pio
E a sombra se amontoa
O peito sente frio
O braço rema à toa
A escuridão do rio

“Cê vai, ocê fica, você não volta mais” *

O mundo por um fio
Que a água desenhou
E o corpo conduziu
Até que a mão deixou
A vida pelo rio




* Citação não-literal de trecho do conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa.



- Beto Furquim é músico. Em 1993, a música ‘Margem’ recebeu o prêmio Editora Abril/USP (Projeto Nascente) de música popular, na categoria compositor, juntamente com as canções: “À beira mar”, “Estrela da manhã”, “Poço sem fundo”, “Sinuosa” e “Fio de geada”. Em 1995, o samba “À beira-mar” foi gravado no CD "Metamorfosicamente", de Marcelo Quintanilha. Em 2000, a canção “Estrela da manhã” foi cantada por Monica Salmaso, no festival da Música Brasileira, promovido pela Rede Globo. Essa interpretação foi registrada no CD com as 12 finalistas do festival, distribuído pela Som Livre e pode também ser apreciada no link do 'You tube'ao lado. Essas e outras composições podem ainda ser encontradas no seu álbum "Muito prazer", produzido por Mário Manga, à disposição no site www.myspace.com/betofurquim









* * *

Beatriz di Giorgi

UNDERGROUND


Não tape os ouvidos,
Nem os olhos.
Preste atenção
Nos movimentos
Subterrâneos
E cheios de silêncio,
Entrecortados e proibidos.
Na realidade a vida vem de dentro:
Underground.



PAREDES


Em mim conservo as paredes da casa antiga, matriz.

Paredes que guardam conversas,
Agonias de morte
E nascimentos com fórceps.

Paredes de sons silenciosos e desenhos dourados.

Paredes que escureciam
A casa antiga,
A casa demolida.

Sonho e reavivo tijolo, pintura,
Parentes que não conheci.

Construo de novo a casa antiga,
Presente no ar
E nas cantigas de ninar.


LIMITES


Centro é confusão
Periferia é definição.

Centro é expulsão
Periferia é impulso.

Centro é coração
Periferia é a flor da pele.

Centro é substantivo.
Periferia é adjetivo

Centro é estático
Periferia é movimento pleno.

Poucos são do centro
Muitos são da periferia.

Uns escondidos no Centro
Outros esparramados na periferia.

Somos todos centro e periferia
Somos todos crônica e poesia.

E em qualquer lugar sonhamos
Com a borracha que apague
Essa triste figura desenhada
Com contornos prontos e perversos.

Queremos no fundo e na forma
Pintar outra imagem mais bela
Com cores pastéis
Com dores e amores de gente inteira.


ESTORVO


Cada um com seu estorvo
Que brada feito trovão
Particular.

Estorvo é um trovão
Que anuncia tempestade,
Mas não avisa quando,
A saturação explodirá
Em líquidas lágrimas
Em vozes alteradas feito trovão.

Peguei o estorvo,
E deixei no meio da rua.

Um passante desavisado recolheu o estorvo,
Encantado que estava, virou mágico
E o estorvo virou tesouro.

Assim caminha a humanidade,
Transformando tesouro em estorvo
E estorvo em tesouros.

Arrependimentos acontecem,
Bons encontros também.


DIÁLOGO COM O DIABO


O diabo sempre quer algo de nós.
Vive a rondar
Com suas tentações,
Exigências, promessas.

Se eu tiver que dar algo ao diabo
Entrego meu passado
De presente.

Que o diabo carregue meu passado,
Os resíduos que não guardei,
Os beijos que não dei,
Aventuras que não vivi.
Que fique tudo com o diabo.

Meu presente tem passado bem.
Meu presente é memória no corpo,
Lembranças nas fotos e cartas.
O resto que o diabo use como quiser.

Me antecipo a qualquer insinuação diabólica
E o futuro me pertence
De corpo e alma.

BARBÁRIES



Barbaridades contemporâneas
Impossíveis de engolir.

Barbaridade, tecnologia e humanidade
Evoluem no mesmo passo.

Lanças cibernéticas,
Linchamentos a céu aberto
Desenham a roda da morte,
A rota da fortuna.

Escapo para minha torre
E observo, serena, o tumulto.

Engano meu: a torre é de Babel
E o papel não é de carne.



- Beatriz di Giorgi é poeta, publicou poemas no ensaio de fotografia intitulado "Choro Absoluto", na Revista Iris (Foto nº 46). Os poemas ‘Barbáries’, ‘Diálogo com o Diabo’, ‘Limites’ e ‘Paredes’, acima, foram escritos especialmente para o sarau.

* * *

Fabio Don

Jardineiro da avenida Paulista

Meu bisavô plantou
Muita flor
E criou um roseiral
Onde não tinha cor
No tempo do preto-e-branco
Ele revolucionou

Gastou com flores seu tempo
E hoje as suas flores têm cultura
Aqui nessa antenada rua
Dessa cidade em que o café foi fermento
Através do pão viu o sol e a lua
Trabalhou dia e noite com sentimento

E até mais outros projetos, outras plantas . . .
O seu jardim está ainda mais importante
Dando outros frutos, outros futuros . . .
Mas ninguém conhece o jardineiro de antes

Chamava-se Francisco Manoel
Tio Chico Brabo
Homem que adoçava a vida com rosas
E dos espinhos, tinha as mãos grossas

No início do século passado
Ex-funcionário de Ernesto Dias de Castro
De Ramos de Azevedo
E dos Ferraz de Vasconcelos

É nesse coração financeiro
De sangue frio e calculista
Nessa artéria, avenida Paulista
Dessa São Paulo de hoje
Onde para muitos, flor não tem valor
Que ele plantou e colhe agora

Porque até hoje na nossa avenida mais famosa
Tem uma casa chamada: “Casa das Rosas”




Samba da Casa das Rosas


Jardim, periferia da casa
Meras plantas no quintal
Raízes que não se vêem
Folhas e galhos secos vem
Com o vento pra dentro num temporal

Trepadeiras se alastram por suas paredes
As entranhas da casa já ocultam sementes
Beija-flores e borboletas invadiram a sala
De noite o protesto é da cigarra

Jardim, periferia da casa
Vida ao redor da casa principal
Excludente com as flores
Do próprio roseiral

Roseiral à margem da casa
Cercando a planta do arquiteto
E quando perfume exala
Ninguém passa reto

Se estiver na estação certa
Se estiver no Paraíso
Se estiver na primavera
Centro-bairro o sentido

Entre nessa que já virou espaço público
Entre nessa que já virou espaço público

Essa casa que exemplifica bem
Como as periferias são perigosas
Já que antes as rosas eram da casa
E agora a casa é das rosas.



- O poeta e músico Fábio Don é bisneto do jardineiro que plantou as primeiras roseiras da Casa das Rosas. O ‘Samba da casa das rosas’ foi feito especialmente para o sarau.

* * *

Deborah Rebello















A pergunta de Diogo



Diogo chegou esbaforido
E pra mãe foi logo dizendo:
Mãe, alguma coisa
muito estranha tá acontencendo...

Sua mãe sem entender
Perguntou com um sorriso:
O que foi minha doçura?
De cabelos tão, tão lisos

E Diogo a olhá-la
Recém-chegado do atalho
Com os braços bem abertos
Parado como espantalho

Ô mãe! retomou o menino
Por que eu tenho pé descalço?
E todos os do seu Deodato
Andam de charrete ou
De sapato...

Ah... meu filho...
Essas coisa não se explica
Eu nunca aprendi..
Por que é que alguns têm sapato
Como os filhos do Seu Deodato...

Deve de sê que a terra dele
Tem mais tamanho e plantação
E a nossa...bem, a nossa
A cada dia, dá o pão...

Mas o menino muito esperto
Não se deu por satisfeito
Ficar sem resposta não ia
Nem que perguntasse ao prefeito...

Achegou-se de seu pai...
Assim, assim, sem querer muito
E baixinho perguntou..
A justiça é desse mundo?

E seu pai, sem muita pressa
Do chapéu se descobriu
Ô menino arretado...
Nem na hora da sesta!
Onde é que já se viu?

Diogo pediu logo desculpas
E foi saindo de mansinho
Pelas paredes escorregando
Achou a avó cantarolando...

Ô Vó! Como é que uma pessoa
É mais rica que a outra?
Uma trabalha no sol
E a outra só caçoa?

Ah meu neto, é assim...
Mas não pense que é sempre
Tem gente que do trabalho
De bicho virou gente...

E Diogo foi andando
até o galpão -oficina
Seu avô forjava ferro
E martelava bem as quinas...

Ô vô! Chamou Diogo
O qu’ é qu’ é melhor?
Ter sapato e carruagem
Ou dançá c’ o pé no pó?

Seu avô surpreendido..
Deu um sorriso amável..
Êta menino maroto!
Vai ser doutor recomendável...

Noutro dia de pé descalço
Foi à escola com uma meta
Precisava saber direito
Se a vida é linha reta...

A professora querida
Responder não sabia
Ficou tempo calada
E a boca semi-aberta

Mas Diogo não desiste...
E a todos sai perguntando
Por que os filhos do Sinhô Deodato
Têm charrete e têm sapato?

Encontrou na praça velha
No degrau da Santa Matriz
O seu Joca da viola
e com um ar de aprendiz:

Por qu’ é que gente rica
Que mora cá no sertão
Não divide a soma e a sobra
Cante aí no violão...

Canto sim...
num sei também...
e não pergunto a mais ninguém
Só tenho coragem de sobra
Pra tocar toda a minh’obra

Eu quero acreditá
Que a justiça tarda e vem
Que um dia todos comem
Os de a pé e os de trem...

Diogo viu o sorriso e
Entendeu a brincadeira...
Deu de ombro pro artista
E foi a Sinhá rendeira...

Sinhá, qu’é qu’ ocê me diz?
Há renda pra todo mundo
Da mais bela e enfeitadeira
De beleza enfeiticeira?

Pros que cabem o pagar
Faço renda de princesa
Pros que garram no pesado
Faço renda e fiado...

Diogo deus uns passos
Rumo ao mais desconhecido
Toda pergunta que cala
Vai pro mundo do esquecido...

Por que alguns têm tanto
E outros num têm nada?
E vivem com menos que pouco:
a resposta anda calada...

Diogo não sossega
enquanto procura a resposta
E sai perguntando ao mundo,
batendo de porta em porta

De onde vem a fartura
Que escolhe a quem ofertar?
Ou será que a fartura
É um bem a comungar?

Um dia Diogo espera
Que a resposta virá.
Ou virá ainda o dia
Que a pergunta cessará?

Menino esperto, danado.
Está sempre a estranhar
O que faz gente sofrer?
Não pára de perguntar...

E cada vez que a pergunta encara
O seu coração também dispara
Não é de raiva ou de medo.
É mais força e mais desejo

Um dia de chuvarada,
aquele cheiro de terra no ar
Saiu sem os seus sapatos
Pelo atalho a reparar...

Era tanto verde e brilho
as plantas estavam se abrindo
A natureza agradecia
A generosa chuva que caia

De repente Diogo correndo,
deu de cara com Seu Deodato
E mais que depressa falou:
O Sinhô tem quantos sapatos?

Seu Deodato não entendeu
De onde vinha aquela pergunta.
Bom dia, menino, falou o homem,
Do que é que se assunta?

Eu queria mesmo saber
Quantos sapatos tinha
O meu pai tem um par de chinelos
E uma meia pra quando esfria

Vai pra roça e pra missa
Com os mesmos chinelos dele
Mas minha mãe faz questão
Que ele troque de camisa

E o senhor? O senhor sabe
quantos sapatos tem?
Quais são os sapatos macios
E com qual à missa vem?

Seu Deodato pensou um pouco
Deve ser uns cinco ou seis
Mas sabia que não sabia
Resposta exata de uma vez.

Diogo, continuou,
Seu Deodato:
Por que alguns tem tanto
E outros quase nada?

Seu Deodato espantado,
não sabia responder.
Quis dar boa explicação
para o menino aprender

Olha filho, eu tenho muitas terras
Que herdei do avô e pai
E as terras me dão frutos
E assim dinheiro atrai

Com o dinheiro da venda,
sustento a minha família
Dou casa, comida e roupa
e na casa toda a mobília

E Diogo fitou-lhe sério
E pensou na própria família
Será que é questão de sorte
Ter sapatos e ter mobília?

Despediram-se menino e homem
Foi um em cada direção
O menino pensativo
e o homem em confusão

Se eu tenho tanto mais
Se eu herdei tudo dos pais
Seria justa a explicação?
Pra quem tem nada
E trabalha tanto
Qual será a solução?

Pensava o menino de um lado
E seu Deodato noutra ponta
O menino nos sapatos
E o homem na sua monta

Queriam ambos uma resposta
Para a exata desigualdade
Tanta gente com tão pouco
No planeta humanidade...

E quem terá a resposta?
Diogo quer logo saber
Tem pressa e vontade
Do assunto desaparecer

Ou na mágica das fadas
Ou na cabeça dos inteligentes
Diogo sabe que pode,
perguntar não ofende.








- Deborah Rebello é educadora e escritora. Escreve contos, poemas e histórias para crianças.




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