Resenha apresentada em Outubro de 2007 na disciplina: ‘Literatura e música no Brasil’; ministrada pelo professor José Miguel Wisnik.
EN SAIO COISA
No texto “João Gilberto / Anton Webern” [1], o ensaísta, tradutor, crítico e poeta concreto Augusto de Campos celebra a invenção na música popular inventando um ensaio crítico que sai da convencional prosa-uninarrada-contínua. Ao comentar o gênero de seu trabalho, denomina-o “coisa” [2]. Ela foi publicada no livro ‘Balanço da bossa e outras bossas’, que por sua vez é uma republicação da obra ‘Balanço da Bossa’ (com doze textos), acrescida de mais dezenove textos. A segunda edição foi lançada em 1974, enquanto a primeira havia saído em maio de 1968, em plena efervescência tropicália. Nesse acréscimo, o autor (in)completa um registro reflexivo do que de mais relevante e inovador se havia produzido na música popular e seus pontos de contato com a música erudita de vanguarda. Como ele mesmo afirma no último texto ‘Balanço do balanço’, ao buscar a captação viva de algo presente e em constante mutação, não poderia enquadrar os acontecimentos daquele momento numa reflexão acabada, mas poderia perseguir os preceitos de Ezra Pound no reconhecimento das ‘news that stays news’ (notícias que permanecem novidade). Assim o fez. Lido hoje, 2007, o livro nos remete aos anos bossa nova - tropicália sem deixar de sugerir uma conexão com o que hoje se faz ou se desfaz na MPB.
O ensaio/coisa que pretendo analisar é o penúltimo texto da obra, e gira em torno da ‘notícia-contínua-novidade’ de dois músicos considerados pelo autor inventores por excelência. Um é o austríaco Anton Webern que, junto com Schoenberg e Alban Berg, revolucionou a música erudita do século vinte; o outro é João Gilberto, que revolucionou a MPB com a BN, seu jeito de cantar cool, os efeitos despojados e tensos, desconcertantes do seu violão. No ensaio, Augusto como que sumariza o que já, no livro, havia sido dito anteriormente sobre Webern, Caetano, Lupicínio, João especialmente, e outros. A ‘coisa’ denuncia, já na composição gráfica do título, o entrelaçamento das escolhas de João e Webern, a fusão do erudito e do popular na MPB. Isso vem como forma e conteúdo juntos não só no título, mas no desenvolvimento do texto, como deve ser uma verdadeira síntese.
Ao falar da vanguarda musical dodecafônica, que suprime a hierarquia das notas da escala cromática; e da vanguarda sofisticada dissonante da BN, reduzida de contrapontos; Augusto mistura suas considerações às de outros comentadores dos músicos inventores. Retirou-as de cartas, biografias, entrevistas, depoimentos variados, apresentados sempre com letra ‘caixa baixa’ à la Cummings. Insere também, numa mescla semiótica, trechos de partituras, estórias em quadrinhos, poemas; trechos de músicas de Lupicínio, Caetano, João Gilberto (músicas suas por autoria ou interpretação); tudo isso de forma caótica, desordenada, mas com um espantoso efeito unificador. Não há tensão seguida de relaxamento no texto colagem, não há ênfases; os trechos se ligam soltos, cheios de cortes internos, com se fossem versos, mas prosaicamente distendidos. Quebrando a linearidade, o autor chama atenção para as unidades que compõe a estrutura das prosas, assim como os músicos focalizados faziam com as notas e timbres da composição. Tomando um exemplo ao acaso:
“a mente de webern foi sempre radical;
partia imediatamente
para as últimas conseqüências
não há de fato, nada
na música de Webern
a não ser últimas conseqüências” (robert craft)[3]
A apropriação acima, como ‘ready made’, conferiu a ‘função poética Jakobsiana’ na mais despretensiosa fala. A nova disposição faz saltar aos olhos rimas toantes (mente/sempre); paronomásias encadeadas em (mente/imediatamente; partia/para); espelhadas (não há / na / a não); assonâncias (não há de fato nada) e o encadeamento de “últimas conseqüências”. O texto passa a ter ritmo, espaço, som! Como a música de que fala.
As considerações do autor, somadas às citações alheias, oferecem insights, não só ao entendimento da obra e das personalidades de Webern / João, como também sua inter-influência no trabalho de revalorização de Lupicínio, na antropofagia tropicalista de Caetano e na poesia verbivocovisual de Augusto. A radicalização do pouco que é muito, a nota só, sutileza, contenção, brevidade, espacialização, rigor quase obsessivo. A todo tempo isso é reafirmado de um ponto de vista diferente. Costurado também pela denúncia da indiferença que foi e ainda é, de certa forma, dada à obra do compositor Austríaco, bem como à do Gaúcho de ‘Volta’. Por tabela, também deflagra a pouca aceitação do público diante das incursões mais radicais de Caetano e da poesia concreta, constantemente acusada de difícil e distante.
A trança de signos elaborada no ensaio/coisa começa com uma foto de Webern e Berg (acima), seguida de um trecho de Stravinsky, que a descreve: “webern, sapatos de tipo camponês, coberto de barro”. Termina com uma foto de João Gilberto, emoldurada acima por uma pergunta e abaixo pela resposta: “e o que é que isso tudo tem a ver com João Gilberto?” / “uma sílaba”. Um fecho aberto, que sugere mas não diz. Deixa pistas muito tênues impedindo uma interpretação assertiva. O que pode ser essa sílaba? É o ‘BER’, que figura nos dois nomes tematizados? É possível que ela seja parte da palavra SÍlaba, o ‘SI’, que já havia sido lançado no ponto em que Robert Craft afirma quase sempre haver sons de SIno[4] evocados na obra de Webern. Já lançado na frase/verso monóstica “SIna e Sino”; no trecho (sobre o) “assasSIno de Webern, chamado Bell (isto é, SIno)”. Em várias palavras utilizadas ao longo do texto: SIlêncio, SIgnificando, SI mesmo, imposSÍvel, impresSIonado, Simples. No fato de que a foto de João o apresenta com a cabeça curvada para dentro, apoiada num dos punhos, os braços cruzados, pensando, enSImesmado. Na movimentação SIncopada de ‘Desafinado’. Na nota ‘SI’ de ‘Samba de uma nota só’.
Tudo isso estaria colocando os artistas citados (Caetano, Lupicínio revisitado, o próprio Augusto) partindo da simplicidade dos sapatos camponês de Webern, fertilizados de invenção pelo barro que os envolve; para então levarem adiante a música nova numa espiral multisígnica que desemboca na (ou devora a) forma introspectiva ‘João Gilberto’?
Unanswered question![5]
[1] Campos, Augusto. “João Gilberto / Anton Webern” in BALANÇO DA BOSSA E OUTRAS BOSSAS (com Brasil Rocha Brito, Julio Medaglia, Gilberto Mendes), São Paulo: Perspectiva, 2005, pp312 a 331)
[2] “Em `E outras bossas`, entremeados com estudos, crônicas, comentários e entrevistas sobre música popular, estão alguns trabalhos que fiz sobre música erudita moderna, com algumas infiltrações poéticas, tudo culminando com a “coisa” que escrevi sobre Webern/João Gilberto.” (CAMPOS: 2005 p 347).
[3] Campos: 2005, p330.
[4] Grifos meus
[5] Citação de obra homônima de Charles Ives, que segundo Augusto é “uma das mais extraordinárias páginas da música contemporânea”.
No texto “João Gilberto / Anton Webern” [1], o ensaísta, tradutor, crítico e poeta concreto Augusto de Campos celebra a invenção na música popular inventando um ensaio crítico que sai da convencional prosa-uninarrada-contínua. Ao comentar o gênero de seu trabalho, denomina-o “coisa” [2]. Ela foi publicada no livro ‘Balanço da bossa e outras bossas’, que por sua vez é uma republicação da obra ‘Balanço da Bossa’ (com doze textos), acrescida de mais dezenove textos. A segunda edição foi lançada em 1974, enquanto a primeira havia saído em maio de 1968, em plena efervescência tropicália. Nesse acréscimo, o autor (in)completa um registro reflexivo do que de mais relevante e inovador se havia produzido na música popular e seus pontos de contato com a música erudita de vanguarda. Como ele mesmo afirma no último texto ‘Balanço do balanço’, ao buscar a captação viva de algo presente e em constante mutação, não poderia enquadrar os acontecimentos daquele momento numa reflexão acabada, mas poderia perseguir os preceitos de Ezra Pound no reconhecimento das ‘news that stays news’ (notícias que permanecem novidade). Assim o fez. Lido hoje, 2007, o livro nos remete aos anos bossa nova - tropicália sem deixar de sugerir uma conexão com o que hoje se faz ou se desfaz na MPB.
O ensaio/coisa que pretendo analisar é o penúltimo texto da obra, e gira em torno da ‘notícia-contínua-novidade’ de dois músicos considerados pelo autor inventores por excelência. Um é o austríaco Anton Webern que, junto com Schoenberg e Alban Berg, revolucionou a música erudita do século vinte; o outro é João Gilberto, que revolucionou a MPB com a BN, seu jeito de cantar cool, os efeitos despojados e tensos, desconcertantes do seu violão. No ensaio, Augusto como que sumariza o que já, no livro, havia sido dito anteriormente sobre Webern, Caetano, Lupicínio, João especialmente, e outros. A ‘coisa’ denuncia, já na composição gráfica do título, o entrelaçamento das escolhas de João e Webern, a fusão do erudito e do popular na MPB. Isso vem como forma e conteúdo juntos não só no título, mas no desenvolvimento do texto, como deve ser uma verdadeira síntese.
Ao falar da vanguarda musical dodecafônica, que suprime a hierarquia das notas da escala cromática; e da vanguarda sofisticada dissonante da BN, reduzida de contrapontos; Augusto mistura suas considerações às de outros comentadores dos músicos inventores. Retirou-as de cartas, biografias, entrevistas, depoimentos variados, apresentados sempre com letra ‘caixa baixa’ à la Cummings. Insere também, numa mescla semiótica, trechos de partituras, estórias em quadrinhos, poemas; trechos de músicas de Lupicínio, Caetano, João Gilberto (músicas suas por autoria ou interpretação); tudo isso de forma caótica, desordenada, mas com um espantoso efeito unificador. Não há tensão seguida de relaxamento no texto colagem, não há ênfases; os trechos se ligam soltos, cheios de cortes internos, com se fossem versos, mas prosaicamente distendidos. Quebrando a linearidade, o autor chama atenção para as unidades que compõe a estrutura das prosas, assim como os músicos focalizados faziam com as notas e timbres da composição. Tomando um exemplo ao acaso:
“a mente de webern foi sempre radical;
partia imediatamente
para as últimas conseqüências
não há de fato, nada
na música de Webern
a não ser últimas conseqüências” (robert craft)[3]
A apropriação acima, como ‘ready made’, conferiu a ‘função poética Jakobsiana’ na mais despretensiosa fala. A nova disposição faz saltar aos olhos rimas toantes (mente/sempre); paronomásias encadeadas em (mente/imediatamente; partia/para); espelhadas (não há / na / a não); assonâncias (não há de fato nada) e o encadeamento de “últimas conseqüências”. O texto passa a ter ritmo, espaço, som! Como a música de que fala.
As considerações do autor, somadas às citações alheias, oferecem insights, não só ao entendimento da obra e das personalidades de Webern / João, como também sua inter-influência no trabalho de revalorização de Lupicínio, na antropofagia tropicalista de Caetano e na poesia verbivocovisual de Augusto. A radicalização do pouco que é muito, a nota só, sutileza, contenção, brevidade, espacialização, rigor quase obsessivo. A todo tempo isso é reafirmado de um ponto de vista diferente. Costurado também pela denúncia da indiferença que foi e ainda é, de certa forma, dada à obra do compositor Austríaco, bem como à do Gaúcho de ‘Volta’. Por tabela, também deflagra a pouca aceitação do público diante das incursões mais radicais de Caetano e da poesia concreta, constantemente acusada de difícil e distante.
A trança de signos elaborada no ensaio/coisa começa com uma foto de Webern e Berg (acima), seguida de um trecho de Stravinsky, que a descreve: “webern, sapatos de tipo camponês, coberto de barro”. Termina com uma foto de João Gilberto, emoldurada acima por uma pergunta e abaixo pela resposta: “e o que é que isso tudo tem a ver com João Gilberto?” / “uma sílaba”. Um fecho aberto, que sugere mas não diz. Deixa pistas muito tênues impedindo uma interpretação assertiva. O que pode ser essa sílaba? É o ‘BER’, que figura nos dois nomes tematizados? É possível que ela seja parte da palavra SÍlaba, o ‘SI’, que já havia sido lançado no ponto em que Robert Craft afirma quase sempre haver sons de SIno[4] evocados na obra de Webern. Já lançado na frase/verso monóstica “SIna e Sino”; no trecho (sobre o) “assasSIno de Webern, chamado Bell (isto é, SIno)”. Em várias palavras utilizadas ao longo do texto: SIlêncio, SIgnificando, SI mesmo, imposSÍvel, impresSIonado, Simples. No fato de que a foto de João o apresenta com a cabeça curvada para dentro, apoiada num dos punhos, os braços cruzados, pensando, enSImesmado. Na movimentação SIncopada de ‘Desafinado’. Na nota ‘SI’ de ‘Samba de uma nota só’.
Tudo isso estaria colocando os artistas citados (Caetano, Lupicínio revisitado, o próprio Augusto) partindo da simplicidade dos sapatos camponês de Webern, fertilizados de invenção pelo barro que os envolve; para então levarem adiante a música nova numa espiral multisígnica que desemboca na (ou devora a) forma introspectiva ‘João Gilberto’?
Unanswered question![5]
[1] Campos, Augusto. “João Gilberto / Anton Webern” in BALANÇO DA BOSSA E OUTRAS BOSSAS (com Brasil Rocha Brito, Julio Medaglia, Gilberto Mendes), São Paulo: Perspectiva, 2005, pp312 a 331)
[2] “Em `E outras bossas`, entremeados com estudos, crônicas, comentários e entrevistas sobre música popular, estão alguns trabalhos que fiz sobre música erudita moderna, com algumas infiltrações poéticas, tudo culminando com a “coisa” que escrevi sobre Webern/João Gilberto.” (CAMPOS: 2005 p 347).
[3] Campos: 2005, p330.
[4] Grifos meus
[5] Citação de obra homônima de Charles Ives, que segundo Augusto é “uma das mais extraordinárias páginas da música contemporânea”.