quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A CULTURA REBELDE DOS ANOS 60 - pelo olhar marxista






Resenha apresentada em Outubro de 2007 na disciplina: 'Literatura e Música no Brasil', ministrada por José Miguel Wisnik.


A CULTURA REBELDE DOS ANOS 60
PELO OLHAR MARXISTA


O momento político e cultural, que se deu entre 1964 e 1969 durante a ditadura, é analisado de forma admirável no ensaio “Cultura e Política”, de Roberto Schwarz, conhecido ensaísta e professor da Unicamp. Roberto assinala as diretas relações sociológicas com a produção cultural do país, especialmente o TROPICALISMO e a produção teatral de grupos como o ARENA e o OFICINA. Antes de lançar alguns comentários, gostaria de parafraseá-lo.

Começa apontando, como anomalia, entre os anos mencionados acima, a manutenção da hegemonia cultural de esquerda num governo autoritário de direita; o que se explica pelo histórico socialista no país: “forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes”[1]. Segundo ele, de 50 em diante, influenciado pelo Populismo, o Partido Comunista alimentou a ilusão de que; através do anti-imperialismo e uma busca limitada às reinvindicações salariais, de reforma agrária e política externa; teria o apoio da burguesia industrial progressista contra os setores arcaicos, agrários das classes dominantes. Essa característica teria feito com que a ideologia de esquerda se fortalecesse superficialmente. No momento em que; nesse clima, ultrapassando um pouco as limitações demagógicas populistas; os camponeses, operários e outros setores da massa popular começam a se movimentar, a direita cria “o fantasma da socialização” e o golpe militar se dá diante da esquerda impotente. Com ele uma força retrógrada e outra progressiva: a volta à repressão familiar cristã tradicional e o avanço capitalista, integrado aos EUA. Isso somado à clemência dada, em caráter restrito, às manifestações culturais esquerdistas da intelectualidade, já que ela não ameaçava o projeto capitalista dominante (pelo menos até 68 assim se deu); tudo isso junto, os anacronismos, as incongruências, é que alimentariam o movimento tropicalista. Para haver imagem tropicalista, arrisca Roberto, “é essencial que a justaposição de antigo e novo – seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – componha um absurdo”[2], um registro estético da situação esdrúxula do país, em forma de alegoria. Sugere considerar essa linha infértil e ‘de classe’, ao contrapô-la à do método Paulo Freire, que juntaria o arcaísmo rural a métodos modernizados e conscientes de educação, resultando em algo possível e positivo.

Assinala outras manifestações que, antes e paralelamente a isso, desenvolvem a tendência ao didatismo simplório e à redundância, apesar de manter uma função de reafirmação da postura inconformada. A necessidade de falar para as massas, ainda que longe delas, e principalmente em defesa das massas é que levou à primazia das formas populares; música, teatro, cinema e jornalismo; em detrimento da literatura. A composição das manifestações teatrais sintonizadas nessa atmosfera ‘festiva’ começou por aliar a música ao teatro, e o exemplo dado foi o do Arena. Inicialmente com o espetáculo ‘Opinião’, seguido do ‘Arena conta Zumbi’ e ‘Arena conta Tiradentes’, o grupo teve o mérito de aproximar o teatro do público jovem universitário, despindo o palco da palavra ‘bem construída’, de atores sofisticados tecnicamente, promovendo didatismo e distanciamento Brechtiniano na música, encenação e interpretação. No entanto, apesar de louvar as intenções revolucionárias e do poder entusiasmante do grupo, o ensaísta desaprova, nessas peças, a ausência de crítica ao Populismo de esquerda, já desmascarado pelos fatos políticos.

Com proposta diversa, identificado com a linha tropicalista, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa é também destacado, como tentativa de “desagregação burguesa” pela agressividade direta do elenco dirigida ao público, seja através de palavras, seja de agressividade física mesmo. Utilizando a riqueza de sugestões que ‘O Rei da Vela’, de Oswald de Andrade, oferecia; o Oficina formula uma estética do insulto, de forma a levar a platéia a projetar medos e identificar-se com o agressor, deixando uma sensação de desmoralização geral. Segundo Schwarz, apesar da válida exposição do descrédito da crise burguesa, a proposta ‘choque’ de Zé Celso não se concretiza como realmente política e mobilizadora, nem sequer essencialmente artística, segundo os critérios do ensaísta marxista: “não tem linguagem própria, tem que emprestá-la sempre de sua vítima, cuja estupidez é a carga de explosivo com que ele opera”[3].

Concluindo, Roberto analisa a então presente situação da cultura, no ano de 70, lamentando o endurecimento das forças armadas, a censura, prisões, torturas, AI5, desagregação das instituições de ensino, e outras medidas que pretendiam, entre outras coisas, por fim à luta armada que começara a pipocar. Lamenta que a resistência ‘populista’ e ‘popular’ da esquerda tenha contribuído para produzir a “cristalização de uma nova concepção do país”[4]. Demonstra, por outro lado, que mudanças, apesar de difíceis seriam possíveis. Parecia acreditar que a ideologia de consumo imposta pelos militares num país miserável dificilmente seria assimilada, mas em nota posterior ao ensaio alerta seu equívoco de prognóstico. O que chama atenção para seu amargo otimismo é a forma como fecha, indicando o caminho do padre de Quarup como única forma viável de futuro social justo: sacrificar todos os privilégios de sua classe na aliança com o povo.

O quadro desenvolvido por Schwarz, longamente parafraseado acima, sua análise crítica inteligente, minuciosa, dá ao leitor atual um entendimento complexo do momento revelado, colorido pela rica seleção de exemplos e pela sua armação numa prosa de grande fluência e impacto. A despeito desse farto registro e de seu exigente convite à reflexão e atuação, incomoda um pouco o julgamento artístico ali presente surgir sempre em função de uma utilidade política. É coerente, levando-se em conta a sua posição marxista como crítico e o fato dos artistas mencionados terem realmente se mobilizado em torno dessa função, acreditando nela. Tudo indica que, na cultura brasileira, esse tenha sido um momento culminante do engajamento político em grande escala, e é frustrante reconhecer que, apesar disso, as injustiças prosseguiram inabaláveis e em escala geométrica. Está claro que Roberto priorizou a investigação dos ‘equívocos’ que acompanharam as intervenções culturais politizadas e seus efeitos, na tentativa de vislumbrar a possibilidade de uma saída diferente. Ainda assim, sinto falta de algumas considerações adicionais que, no ensaio, poderiam lançar luz sobre o fato de que os caminhos artísticos criados a partir de experiências ‘politicamente fracassadas’ vão além desse aspecto. Do ponto de vista humano, estético, de costumes, a tropicália e as incursões teatrais dos anos 60 não devem ser julgadas somente por esse parâmetro.

É claro que eu estou em posição vantajosa para reivindicar uma análise mais relativizante e talvez dotada de um outro tipo de otimismo, já que estou trinta e sete anos avançada no tempo em relação à voz de Schwarz nesse trabalho. Hoje, somos levados a acreditar que, mesmo se o Brasil tivesse se embrenhado numa experiência socialista ou outra possível, as misérias continuariam as mesmas, só que diferentes. Minha leitura vibrou com a revelação de um universo intenso, esquematizado de forma lúcida, talvez em demasia. Precisei recorrer à sensibilidade de uma participante indireta daqueles tempos para compensar meu vazio. Clarice Lispector falava que não acreditava no poder de mudança social e política da arte. Nem da sua, nem da de outros. Apesar disso, dizia ela que escrevia por compulsão, por necessidade vital. Em suas palavras:

“Lerner: Então por que continuar escrevendo, Clarice?
Clarice: E eu sei? Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro, não é?”[5]

A escritora sugere que se a arte não é capaz de modificar o sistema, modifica certamente o próprio artista que se transmuta no fazer. A meu ver, modifica também, ao menos subjetivamente, aqueles que estão receptivos à arte, ao ter redimensionado o seu modo de conceber e interagir com o mundo sensível. É claro que, no caso dos artistas rebeldes dos anos 60, eles queriam de fato alterar as coisas, mas junto com isso queriam também ‘desabrochar’ como vozes de uma geração. Aos que pensam que o exemplo dado neste caso pode ser infeliz, por ter vindo de alguém largamente considerada alheia a questões políticas e portanto ‘individualista’; estudos da obra de Clarice têm recentemente demonstrado que, por vias indiretas, seu trabalho possui mais teor revolucionário conceitual do que aparenta, além da inegável renovação formal. De qualquer modo, se as crenças de uma artista como ela não forem as mais adequadas para sugerir, naquele contexto, a existência de um poder transformador da arte, aquém ou além da condição de cidadão participante, pode-se também analisar, abaixo, uma declaração que toca nesta questão, vinda de um dos protagonistas do momento rebelde que nos interessa:

“há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do que fizemos, quando quase nada fizemos além de chamar a atenção para o fato de que temos um dever de grandeza ... Mas ainda acho que eu estar hoje aqui, dizendo o que disse, porta, em combinação rítmica com o resto de minhas atividades, algum teor de poesia não de todo desprezível. E essa poesia quer dizer, pelo menos, que há graça em existirmos.” [6] (Caetano Veloso)
[1] SCHWARZ, R. Cultura e Política 1964-1968 in O pai de família e e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978, 2ª edição, p 63.
[2] Idem – p 76.
[3] Idem Ibidem – p 88.
[4] Idem Ibidem. p 92.
[5] LERNER, J. “A última entrevista de Clarice Lispector”. Shalom. São Paulo: junho-agosto de 1992.
[6] VELOSO, C. “Diferentemente dos Americanos do Norte” in Caetano Veloso O Mundo Não é Chato (org: Ferraz, E.). São Paulo: Cia das Letras, 2005.