PROCESSO DE TRADUÇÃO POÉTICA NA CASA GUILHERME DE ALMEIDA
Poema original
economic secu
rity” is a cu
rious excu
se
(in
use among pu
rposive pu
nks)for pu
tting the arse
before the torse
e.e.cummings
|
Tradução Poética
o seguro, o pecú
lio” são descu
lpas ao cu
lto
(co
isa em apu
ro por pu
tos)que empu
rra o ânus
antes do crânio
tradução:
Cecilia Furquim
|
ANÁLISE:
O poema corta a
sílaba ‘cu’ /kju:/, na 1ª estrofe, nas palavras: security [sɪˈkjʊərɪtɪ], curious [ˈkjʊərɪəs] e excuse [ɪkˈskjuːs]. Ao fazer isso, chama atenção para
algo que representa o símbolo químico do elemento Cobre (também, por sua vez, símbolo
de dinheiro), interpretação reforçada pelo uso da expressão: ‘economic security’.
O corte isolando esta sílaba no fim dos três versos é, portanto, bem
significativo, reiterando a imagem que será problematizada no poema. A sílaba aparece em três combinações
diferentes: secu, cu, excu. No plano do conteúdo, a ‘segurança econômica’ é colocada
como valor que não assume seus reais interesses, sendo símile de ‘excuse’
(desculpa). As aspas que aparecem somente do lado direito da expressão
desestrutura a leitura habitual que temos com aspas funcionando sempre para
abrir e fechar algo que será ressaltado, isolado dos demais. Neste caso elas só
fecham, não abrem.
A segunda estrofe
forma um bloco isolado cuja intencionalidade é menos clara, mas lendo-se o 1ª
verso ‘se’ juntamente com o 2ª ‘in’, podemos ter um som igual ao da palavra ‘seeing’
[ˈsiːɪŋ] que pode ser o substantivo ‘habilidade
de visão’ ou a conjunção (= ‘inasmuch as’ ou ‘since’). Ela pode ter então um
significado em si, enquanto estrofe. A desculpa mencionada no primeiro verso é
‘vista’, ou a idéia que esclarece a ‘segurança econômica’ como sendo na verdade
uma desculpa para outros fins será introduzida pela conjunção ‘seeing’. Outra
leitura seria não prolongar o som do ‘i’ /i:/ e ler essa estrofe como ‘sin’ (sɪn), significando simplesmente ‘pecado’, no caso remetendo ao pecado da
‘avareza’. O uso do parêntesis é também trabalhado de forma expressiva pelo
poeta. Indicando uma digressão, ele, no caso dessa estrofe, mostra ‘sin’,
ressaltando a palavra isolada ‘in’ permitindo a leitura de ‘sin’ como algo que
estaria dentro, interiorizado no homem.
Na 3ª estrofe, o
mesmo recurso de corte da 1ª é feito com a sílaba ‘pu’ (desta vez totalmente
isolada, sem nenhuma combinação). Ela aparece nas palavras: ‘purposive’ [ˈpɜːpəsɪv], ‘punk’ (pʌŋk)
e ‘putting’ /pʊtɪŋ/. O som da letra ‘u’ aí varia,
sendo o primeiro /ɜː/, o segundo /ʌ/ e o terceiro / ʊ/. A sílaba sozinha não
possui aparentemente nenhum significado em inglês, como acontece com ‘cu’,
porém ela mantém a sonoridade da letra ‘u’, já impressa na 1ª estrofe do poema,
ainda que em suas variações / ɜː/, /ʌ/, / ʊ/. Também seu som, se lido isoladamente,
remete à palavra ‘poo’ /puː/, que significa o substantivo
‘excremento’ ou o verbo ‘defecar’. Essa possibilidade é reforçada pela
referência imagética que vem em seguida da palavra ‘arse’ (‘anus’ ou ‘pessoa
burra, tola’). Também as escolhas léxicas nesta estrofe são colocadas de forma
negativa, como ‘purposive punks’, sendo ‘punk’ na gíria, conforme o dicionário,
uma pessoa jovem, rebelde, de um determinado movimento (significado neutro),
mas também palavra que pode designar uma pessoa inferior, sem valor, podre
(significado mais negativo). Esta estrofe
imprime negatividade aos defensores e usuários da ‘segurança econômica’.
A última estrofe
fecha o poema com a apreciação do eu lírico sobre o que está oculto na frase ‘economic
security’, apresentando a imagem ‘putting the arse before the torse’. A estrofe
remete ao ditado “putting the cart before the horse”, que em português seria:
“colocar o carro à frente dos bois”, fazendo uma relação sonora entre ‘cart’ e
‘arse’, bem como com ‘horse’ e ‘torse’. A palavra ‘torse’ não é comum, mas
consultando-se o dicionário sabemos que é um sinônimo de ‘wreath’ (coroa) no
contexto da heráldica. Remete também possivelmente a torso (tronco humano). O
fecho do poema está criticando a inversão existente na valorização de ‘arse’ em
detrimento de ‘torse’, que sendo ‘coroa de flores’, seria algo usado na cabeça.
São duas imagens de algo circular, e também aproximadas pelo som /ɑː(r)s/, (ˈtɔr s). Porém com valores e funções bem diferentes: ‘torse’ está no âmbito do
pensar, raciocinar, enquanto ‘arse’ está no âmbito das necessidades
fisiológicas.
Observando a forma
como as estrofes são criadas pelo poeta, percebemos uma construção moderna,
diferente, mas em alguns pontos parecida com algumas categorias do velho soneto.
No início se propõe um tema, nesse caso questionar a validade de ‘segurança
econômica’. Em seguida se apresenta uma apreciação negativa dos defensores
deste tema, e termina por revelar uma crítica contundente ao significado que
está oculto no tema: aqueles que valorizam e lutam pela segurança econômica
estão valorizando apenas as funções básicas, fisiológicas do homem, (aquilo que
o prende a instintos mais primitivos de sobrevivência) e deixando em segundo
plano outras funções mais importantes, como o uso da razão, a construção mais
abstrata do mundo, onde se encontram grandes conquistas da civilização. O poema
é conhecido como sendo uma crítica ao programa que o presidente Roosevelt tinha
lançado para tirar o país da recessão, conhecido como “New Deal”. Cummings era
um crítico ferrenho de Roosevelt e repetidamente ridicularizou o programa WTA.
Sendo assim a crítica no poema parece incidir sobre o paternalismo do governo que
artificialmente produz ofertas de trabalho ao invés de preparar a população,
com educação e treinamento, para que ela possa se encaminhar por si só às
demandas econômicas. Essa análise pode ser observada nas afirmações abaixo:
“Collected Poems
(que inclui 22 poemas novos) e 50 Poems ressaltam um aspecto da
“maioriadaspessoas” (‘mostpeople’) a que demonstra especial desprezo: o desejo
pela segurança econômica. Naquele momento, o ‘New Deal’ de Roosevelt havia
implementado Seguridade Social, e o ‘WPA’ havia encaminhado com sucesso milhões
de volta ao trabalho em projetos governamentais. Cummings desaprovava e não
tinha confiança em Roosevelt, e como Frost, achava que o ‘New Deal’ (chamado
por ele de ‘nude deel’) estava no caminho do coletivismo odioso que ele havia
visto na Rússia. Muitos poemas desses livros tocam o problema, incluindo esta
bagatela:
[cita trechos do
poema “economic secu”] ...
Brincando com a expressão
“putting the arse before the horse”, Cummings afirma que essa preocupação
econômica está indo ‘backasswards’ (‘pracutrás’) e nessa posição a idéia
naturalmente fede (‘pu’ é repetido duas vezes mais nos versos aqui
suprimidos). [...]”[2]
TRADUÇÃO:
1ª tentativa
a constância eco
nômica” é bre
vê que enco
bre
(ve
leidades
espú
rias dos pu
tos)o impu
tar do ânus
sobre o crânio
|
Na 1ª tentativa de
tradução procurei formar a palavra ‘cobre’ isolando cada uma das sílabas desta palavra no final de versos subseqüentes (versos 1 a 4), mas essa opção tinha perdas sonoras, além de não
trabalhar com as sílabas tônicas no fim de três versos, atrapalhando também a sonoridade.
Na 2ª e na 3ª
tentativas procurei manter as sílabas ‘cu’ e ‘pu’ cortando palavras em que elas
aparecem como tônicas, ficando assim mais limitadas as escolhas em português,
aumentando o grau de dificuldade da tradução. Julguei, no entanto, importante
manter as mesmas sílabas e trabalhar com elas enquanto tônicas. No caso de ‘cu’
a representação de cobre é igual em português, e ela tem também a representação
adicional para nós, que a sílaba ‘pu’ possivelmente tem em inglês, de ligar-se
a ‘excremento’, ‘defecar’, ligando-se também à palavra ‘arse’, trazendo uma
concentração de significados bem vinda ao poema traduzido. Também o som de ‘pu’
no nosso contexto pode talvez remeter à palavra ‘pum’, mas isso é menos
claro.
Para perceber
melhor a sonoridade original e assim procurar mantê-la na tradução, achei por
bem suprimir temporariamente os cortes dados no poema visual. Ao fazê-lo
encontrei uma possível combinação de três versos (dois decassílabos e um
eneassílabo), com diferentes acentos:
economic
secu/rity'' is a cu/rious 10 (3/6/10)
excu/se
(in/ use among pu/rposive pu/nks) 10 (2/4/7/10)
for pu/tting
the arse/ before the torse 9 (2/5/7/9)
2ª tentativa
a constância no
acú
mulo” é descu
lpa ao cu
lto
(em
uso e em apu
ro por pu
tos)do pu
lo do ânus
sobre o crânio
|
a constância no acúmulo” é desculpa 10
(3/6/10)
ao culto (em uso e em apuro por putos) 10 (2/4/7/10)
do pulo do ânus sobre o crânio 9 (2/5/7/9)
3ª tentativa
o cuidar do pecú
lio” é uma descu
lpa que incu
te
(cu
lto em dispu
ta por pu
lhas)o pú
lpito do ânus
sobre o crânio
|
o cuidar do pecúlio é uma desculpa 10 (3/6/10)
que incu/te (cu/lto em dispu/ta por pu/lhas) 10 (2/4/7/10)
o pú/lpito do ânus/ sobre o crânio 9
(2/5/7/9)
A
partir desse ponto apresentei esse processo ao grupo de tradutores que
realizava a oficina, com a orientação do tradutor e versionista Carlos Rennó.
Como a preocupação formal já estava avançada a análise incidiu principalmente sobre
quais escolhas léxicas estavam mais bem resolvidas no poema e quais não soavam
naturais. A palavra ‘pecúlio’ foi bem aceita e Carlos Rennó inclusive achou a
escolha interessante por remeter a uma canção de Gilberto Gil composta quando
Gil tinha 25 anos, inspirada numa notícia de jornal em que outro jovem também
de 25 anos havia morrido e deixado à família um seguro que estava então sendo
reclamado. Gil procurou fazer na canção “uma investida contra a busca de toda
segurança burguesa, de todos os anteparos, armaduras e ações contra as
intempéries da vida[3]”,
fazendo o rapaz na canção morrer diante da companhia de seguros. A combinação de
palavras envolvendo ‘pecúlio’ usada na tradução (“o cuidar do pecúlio”) não
soava natural, porém. A partir dessa sugestão, pensei em fazer uma alusão
explícita a um dos versos da canção de Gil (o seguro de vida, o pecúlio), apenas
suprimindo o complemento ‘de vida’.
Também
discutimos sobre possibilidades ainda não realizadas até então de recriar a
alusão ao ditado presente no original. Apresentei duas novas opções que
lembrassem o ditado em português: “colocar o carro à frente dos bois”. A 4ª tentativa
procurou seguir o esforço de Cummings quando troca as palavras do ditado por
outras com semelhança sonora: “que empurram o escarro à frente da voz”. Já a 5ª
tentativa propõe uma semelhança sonora somente com a palavra carro: “que
empurra o ralo à frente do raro”.
4ª tentativa
o seguro, o pecú
lio” são descu
lpas aos cu
lto
s(co
mum entre pu
ros pu
tos)que empu
rram o escarro
à frente da voz
|
5ª tentativa
o seguro, o pecú
lio” são escu
sas ao recu
o
(co
isa de pu
ros pu
lhas)que empu
rra o ralo
à frente do raro
|
Ficou
constatado pelo orientador do grupo que o verbo ‘empurrar’ parecia mais
adequado do que o substantivo ‘pulo’ ou ‘púlpito’. No entanto, também em sua
opinião, os contrastes léxicos finais das novas tentativas ficaram devendo ao
conquistado anteriormente: “ânus/ crânio”. Dessa forma esse contraste foi
recolocado na versão final, dentro de uma nova sintaxe: “que empurra o ânus
antes do crânio”. O advérbio ‘antes’ foi escolhido por manter a métrica
original deste último verso que deve ter somente 4 sílabas poéticas, e por ser
uma aliteração/assonância com ‘ânus’.
Também
a expressividade da segunda estrofe nas 4ª e 5ª tentativas foram melhor
resolvidas com o isolamento de palavras significativas como ‘tosco’ após a
letra l (que pode ser lida como o número 1) ou
“oco”. Porém o plural em “cultos” parecia inadequado sonoramente,
resultando na escolha dessa palavra no singular, o que gerou a segunda estrofe
da versão final: “lto/(co”. Ela sugere a palavra “toco” (resto de algo que se
quebrou). Julguei também mais adequado, nas 2º e 3ª estrofes, a escolha da
palavra “coisa” ao invés de “comum”, pela parte isolada no corte “isa” ser mais
parecida com a palavra “use”. A palavra
‘putos’ permaneceu ao invés de pulhas, por ela fazer uma reverberação sonora da
palavra ‘culto’ usada anteriormente.
FINAL
o seguro, o pecú
lio” são descu
lpas ao cu
lto
(co
isa em apu
ro por pu
tos)que empu
rra o ânus
antes do crânio
|
Resultado Final:
o
seguro, o pecú/lio são descu/lpas 10 (3/6/10)
ao cu/lto (co/isa em apu/ro por pu/tos) 10 (2/4/7/10)
que empurra o ânus antes do crânio 9 (2/4/6/9)
O resultado considerado final apresenta porém uma desvantagem no aspecto
visual, em que as imagens formadas pelos desníveis do alongamento dos versos no
lado esquerdo das estrofes não reconstitui a visualidade original. A 2ª estrofe
ficou com versos de tamanhos idênticos e a 3ª estrofe ficou com uma imagem
contrária, com o último verso mais longo do que os anteriores. Uma forma de
resolver isso seria uma outra tentativa que traria a seguinte solução:
POSSÍVEL SOLUÇÃO VISUAL
o seguro,o pecú
lio” são descu
lpas ao cu
lto
(co
isa em apu
ro por pu
tos)do pú
lpito do ânus
sobre o crânio
|
o
seguro, o pecú/lio são descu/lpas
10 (3/6/10)
ao cu/lto (co/isa em apu/ro por pu/tos) 10 (2/4/7/10)
do pú/lpito do ânus sobre o crânio 9
(2/5/7/9)
Essa possível solução mantém inclusive os mesmos acentos do original no
último verso, porém perde a referência ao ditado. Achei importante manter a
forma chamada ‘final’ como tal, ainda que ela não apresente uma correspondência
exata do aspecto visual. Por outro lado, além de fazer alusão indireta ao
ditado, a solução final conseguiu manter o penúltimo verso menor do que o
último. Penso que nesse ponto a correspondência visual seja mais significativa,
já que o movimento de antecipar ‘arse’, em relação a ‘torse’ acontece tanto no
significado como na forma, assim como ocorre com ‘ânus’ e ‘crânio’. ‘Ânus’ vem
antes de duas maneiras, posiciona-se mais à esquerda e também acima de
‘crânio’. Um espaçamento maior do que o natural no penúltimo verso ajudou
também a ressaltar essa posição no papel.
Cecilia Silva Furquim Marinho,
julho de 2013
[1] Poema que faz parte do trabalho New Poems
que está incluso em Collected Poems, publicado em 1938 : CUMMINGS E.E.
in Complete Poems, 1904-1962 edited by George J. Firmage. – Ver., corr.
and expanded Ed. containing all the published poetry. New
York: Liveright Publishing Corporation, 1994.
p477. No trabalho New Poems, o poema é introduzido pelo número 15
e não possui título.
[2] Trecho traduzido por mim e retirado do
trabalho: COHEN, Milton A. Beleaguered Poets and Leftist Critics: Stevens , Cummings, Frost and Williams in the
1930’s. Alabama: The University of
Alabama Press, 2010. pp 105, 106. In: http://books.google.com.br/books?id=w1z_dmv_CRoC&pg=PA105&lpg=PA105&dq=%22new+deal%22+%22e.e.cummings%22+%22economic+secu%22&source=bl&ots=ThCTD77vGA&sig=nVlchqQbF3W3pTh-dDY42CL6fjA&hl=pt-BR&sa=X&ei=ZY7TUeSZJLPo0wHV44G4Aw&ved=0CCwQ6AEwAA#v=onepage&q=%22new%20deal%22%20%22e.e.cummings%22%20%22economic%20secu%22&f=false (acesso em 03/07/2012).
[3] Depoimento de Gil sobre sua criação, retirado do site oficial de
Gilberto Gil: http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=20&letra
(acesso em 02/07/2013)