coluna em branco no espaço de Lourenço Diaféria (16/09/1977)
Ensaio apresentado ao 'Programa de pós graduaçao
em literatura brasileira'
Disciplina: O narrador na
Literatura Brasileira. Formas narrativas e
mudanças sociais (1960-2000)
Prof. Jaime Guinsburg USP – FFLCH – DLCV 01/08/2010
Cecilia Silva Furquim Marinho
A DITADURA E OS HERÓIS
“Feliz o povo que não tem heróis” (Brecht)
“Nós não somos um povo feliz. Por isso
precisamos de heróis” (Augusto Boal)[1]
A crônica de Lourenço Diaféria, “Herói. Morto. Nós.”,
publicada em 1977 no jornal “Folha de São Paulo” alude à necessidade de heróis,
a empatia com heróis, com toda a angústia que essa necessidade suscita, bem
como a catarse que ela provoca; além de criar espaço de incertezas, de algo
inacabado, mutilado a partir do tratamento da ambiguidade que a palavra
comporta e das técnicas narrativas que usa.
É uma obra que pega o leitor desprevenido nesse espaço ao rés do chão,
que é o espaço da crônica, no papel prosaico de jornal, cheio de sujeira e
banalidades. É de lá que, de repente, uma convulsão surge e modifica o estado,
a respiração, o batimento cardíaco do leitor. Com linguagem típica das
crônicas, próxima, direta, popular, o texto de Diaféria, no entanto, surpreende
pela seriedade que assume diante de seu objeto. Não recorre ao humor, nem à
leveza: é dura e grave.
Diaféria, que
fora sempre e somente jornalista, foi comparado à Rubem Braga, pelo fato de não
ter se aventurado em gêneros literários mais nobres[2].
Ficaram ambos na despretenciosa e por isso grande humanidade da crônica,
segundo atribuições de Antonio Cândido[3].
Iniciou sua carreira de preparador de matérias em 56, e de cronista em 64. Em
77 continuava no mesmo jornal ‘A Folha de São Paulo’ e tinha prestígio e aceitação entre os leitores e os colegas de
redação. Era, segundo um deles, uma pessoa leve:
“Eu estava lá, posso contar. Trabalhei na
Folha por dois anos e meio na segunda metade da década de 1970. Diaféria era o
chamado boa-praça, sempre sorridente, de grande talento, querido por todos.
Nós, metidos a revolucionários, que fazíamos parte da troupe do editor Tarso de
Castro, achávamos até que ele era leve demais, pois estávamos em plena ditadura
civil-militar. Nem sabíamos a porcaria em que ia se transformar o país nos anos
seguintes. Deveríamos era agradecer aos céus por termos perto, todos os dias, o
cronista da cidade, com uma popularidade que testemunhei pessoalmente, pois
nesse momento o mundo explodiu.[4]”
O mundo explodiu
para o cronista e também um pouco para o jornal que o acolhia, a partir da
reação gerada pela crônica em questão. Diaféria incomodou fundo os governantes
militares, naquele 1º de setembro de 1977, com suas considerações a respeito do
herói. Reconstituindo a crônica, ela a princípio se presta a homenagear um ato
de bravura de um sargento que sacrificou sua vida para salvar uma criança, em
passeio num zoológico de Brasília, acompanhado da mulher e dos filhos. O nome
do sargento de 33 anos: Sílvio Delmar Holenbach. O garoto que havia caído no
poço das ariranhas sobreviveu, mas seu salvador morreria dias depois em
decorrência de uma infecção generalizada causada pelas mordidas dos animais.
Esse ato, que foi explorado pelos jornais, impressionou deveras o cronista que
já começa intitulando seu texto de forma inusitada: “Herói. Morto. Nós.” As
três pausas que se dão pelo uso dos três
pontos finais já antecipam uma linha expressiva textual que vai ser explorada
até o fim, e que vai se apoiar intensamente na alternância entre pausa e
linguagem, o silêncio e o ruído decorrente delas. A análise feita por Cilza Bignotto e Noemi Jaffe capta
outros importantes significados do título:
“... o uso dos três pontos finais e a disposição das
palavras “Herói”, “Morto” e “Nós” podem ser analisados como prenúncio da idéia principal do texto,
a de que o herói está separado de nós pela morte. Herói é substantivo; morto, adjetivo; nós,
pronome. Se pensarmos que os pronomes são usados em função dos nomes, podemos dizer que “nós”
está em função de “herói”, mas apenas quando o herói tem a qualidade de estar “morto”.
A morte nos separa irremediavelmente do herói, a quem só conhecemos depois
de morto. Os pontos não são de interrogação, ou de exclamação, ou vírgulas; são pontos
finais, o que enfatiza a noção de morte, fim.”[5]
A noção de herói,
lançada dessa forma, especifica que trata-se daquele que dá a vida pelo outro,
o que o diferencia de outros tipos de heróis. Aqueles que se notabilizam, que
despertam admiração, que se arriscam, sem, no entanto, perder a vida, podem também
ser qualificados pelo mesmo termo. Mas esse que será homenageado, esse é do
tipo que entregou a vida, sem recebê-la de volta. Essa particularidade já produz uma série de
implicações. Não se trata de meio termo: é vida e morte, e morte que produz
vida. São instâncias puras que evidenciam, por comparação, a impureza do estado
da grande maioria misturada, os indivíduos normais. Que fascinam esses indivíduos normais pela
grandeza que eles não tem; e que geram alívio nesses mesmos indivíduos, por não
terem essa grandeza que cobra preço tão alto.
Eles se purificam por empréstimo, um pouquinho, pela funda empatia que
estabelecem com o herói, mas podendo em seguida, com uma pitada de culpa e
alegria, voltar a suas vidas impuras que valorizam e que não estão oferecendo a
ninguém, para, inclusive, poderem se regozijar na celebração da vida que o
herói produziu, no caso: a vida do garoto.
Algo próximo da catarse. Não é à toa que os mitos eram matéria por
excelência da experiência artística trágica e épica nas Civilizações antigas e
que seu heroísmo ajudava a definir os gêneros.
Considerações a respeito do herói mítico, feitas por Anatol Rosenfeld,
são bastante pertinentes:
“A imaginação
mítica é, ademais, profundamente irracional; não há mito racional. O substrato do mito não são,
como vimos, pensamentos e sim emoções. É a unidade do sentimento que substitui a
coerência lógica. O mito é um modo de organizar as emoções mais veementes, é projeção de temores, de angústias, de wishful thinking,
de esperanças fundamente arraigadas. O herói mítico é a personificação de
desejos coletivos. Em tempos de crise, este desejo impregna-se de força
virulenta e projeta a imagem plástica e individual das esperanças em forma de
personificação. Na criação do herói mítico prevalece a crença primitiva de que
todos os poderes humanos e naturais podem condensar-se numa só personalidade
excepcional. Quando em amplos grupos se manifesta a esperança coletiva com
intensidade máxima, eles facilmente podem ser convencidos de que só se
necessita da vinda do homem providencial para satisfazer todas as aspirações.”[6]
O Brasil do século XX não é exatamente lugar nem tempo para heróis
míticos. O sargento seria um herói prosaico, diminuído, um pálido resquício
desse herói mítico. Porém, por incrível que pareça, tem algo dele. E por isso o
narrador inicia seu primeiro parágrafo já se defendendo da possível
desqualificação que o sargento poderia receber:
Não me venham com besteiras de dizer que
herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada
para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas,
para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.[7]
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.[7]
O herói mítico,
sendo produto da imaginação ficcional ou da projeção irracional dos desejos
coletivos, não seria tido como real. É preciso então negar a inexistência dele,
“com todas as letras”. Por outro lado, o narrador sugere o desgaste da palavra
‘herói’, indicando que sua suposta ‘inexistência’ não impede que a palavra
tenha ampla circulação, aderência a diversos tipos de usos, possuindo uma
existência simbólica inegável, cuja apropriação, apesar de comum, o autor não
pode evitar. Em seguida, ele faz menção ao uso da palavra que está associada ao
heroísmo militar: morrer na guerra, disparar tiro; e também ao heroísmo dos
mártires políticos, como Tiradentes, que morreu enforcado. Nenhum desses é o
caso do Sargento Sílvio, e o autor considera isso uma qualidade: “tanto
melhor”. Esse não enquadramento do Sargento na modalidade de herói militar e o
descaso pela modalidade, que será seriamente retomado na continuação da
crônica, tem sustentação em Hegel. No livro O mito e o herói no moderno
teatro brasileiro, Anatol Rosenfeld cita afirmações do filósofo de que o
herói grego teria responsabilidade individual (‘etos individual’) pela execução
de seus atos heróicos[8],
diferentemente da tentativa de reconstrução do herói no tempo prosaico, que não
obteria o mesmo efeito pelo fato do
sujeito ter sua substância alienada na aderência à sociedade burguesa. Nela,
seriam o estado ou a coletividade os responsáveis finais pelos atos, sendo os
homens que os veicularam substituíveis. Seguindo esse raciocínio, o filósofo
não exclui nem os monarcas nem os militares da incapacidade de reconstrução do
herói moderno:
“Os monarcas já não são ... o ápice em
si concreto do todo, mas um centro mais ou menos abstrato dentro das
instituições já por si desenvolvidas e fixadas pela lei e constituição... Da
mesma forma um general ou mesmo um marechal certamente ainda têm grande poder:
fins e interesses essenciais entregam às suas mãos e sua visão clara, coragem e
vontade decidem sobre as coisas mais importantes; ainda assim, aquilo que nesta
decisão se deve atribuir ao seu caráter subjetivo, como âmago pessoal dele, é
de amplitude pequena. Pois de um lado os fins já lhe são dados e encontram a
sua origem – ao invés de na sua individualidade – em circunstâncias exteriores
ao âmbito do seu poder; de outro lado, tampouco produz por si mesmo os meios para
executar estes fins; ao contrário, os meios lhe são fornecidos, visto não serem
do seu domínio e não se subordinarem à sua personalidade....”[9]
Seria
então o fato do sargento não se enquadrar nestas categorias, uma afirmação da
sua individualidade na escolha pelo salvamento? Ele, apesar de ser militar, não
estava em serviço, não agiu em nome da corporação, das missões institucionais,
não usou as armas que esta corporação lhe forneceu. Estava ali o Sílvio apenas,
em uma individualidade que seria um pouco mais próxima daquela do herói grego
de Hegel. O narrador da crônica não compartilha, então, da idéia Hegeliana de
impossibilidade de reconstrução desse herói nos tempos modernos, apesar das
muitas características diferentes que os separam.
Em seguida, o
narrador se defende novamente de uma outra possível acusação ao heroísmo do
sargento: seu ato seria fruto da inconsciência do perigo. Nesse momento o
narrador não apresenta mais nenhum dos argumento racionais de que se valeu
anteriormente. Assume o caráter irracional da busca do herói, compara-o a outra
busca irracional, a religiosa. Ao fazer a comparação, abraça o significado
mítico do herói, sem rodeios, ao dizer que ele “redime a humanidade à deriva”.
Acena para a outra opção do Sargento Sílvio: continuar vivo pai de família,
acabar capitão, major, totalmente inserido na sociedade civil, militar,
política, livre de perigos. Volta ao risco que realmente assumiu e que o separa
de tudo isso: “Está morto”. “Um belíssimo sargento morto.” Nesse primeiro
trecho da crônica selecionado, chama a atenção a repetição das palavras ‘herói’
(4 vezes) e ‘morto’ (2 vezes), bem como as derivações ‘heroísmo’ e ‘morreu’.
Essas repetições remetem às duas primeiras palavras do título, num eco
amplificado. As pausas produzidas pelos pontos finais do título se mantém e se
intensificam no decorrer do texto acompanhadas pelas pausas de mudanças de
parágrafos, que ocorrem antes do momento natural, com intensidade ainda maior
no fim do trecho no parágrafo mínimo: “Está morto.” E o espaço dado nestas
mudanças cria vazios visuais que acompanham os vazios sonoros. Tudo
contribuindo para criar a atmosfera de
impacto diante da experiência limite que se expressa mais no silêncio que na
palavra. Esse recurso porém será mais explorado ainda no trecho que segue:
“E todavia.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.”
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.”
O corte brusco
após a conjunção, para depois retomá-la no parágrafo seguinte e concluir a
idéia cria um suspense que se justifica plenamente. A partir dessa conjunção a
crônica saltará para um outro patamar, levando o leitor e até o destino do
cronista a outro nível de problema. A idéia que aparece por contraste à homenagem
feita anteriormente contextualiza essa homenagem através do ataque, da
inferiorização da categoria de herói militar, aquela mesma que ele havia
antecipado não pertencer o Sargento Sílvio. E cita um nome que representaria
essa categoria: Duque de Caxias, um herói militar que, por ter sido um dos mais
importantes militares da história do Brasil, fora condecorado pelo governo
federal, em 1962, o ‘patrono do Exército
brasileiro’. Esse patrono foi um militar conservador, que lutou e silenciou
movimentos populares durante sua carreira, tendo adquirido o posto de Duque às
custas da defesa das classes dominantes. Ninguém melhor do que ele para
representar os militares daquele momento histórico. O ataque do narrador começa
mais suave, pela afirmação “com todas as letras” de que a categoria de Sílvio
seria preferível, para depois assumir uma violência crítica ao reduzir Duque de
Caxias a uma estátua, no sentido negativo. A estátua, que inicialmente é
erigida para engrandecer uma figura humana, para prolongar a sua imagem através
dos tempos, agora se mostra num outro ângulo: seu material a torna fria, dura,
despida de humanidade, indiferente na ausência de interação com aqueles que a
rodeiam. E esses que a rodeiam são identificados
como sendo os ciganos e as pombas, seres despidos de prestígio, invizíveis,
marginalizados na paisagem social. Em seguida o narrador faz menção ao povo
como coletividade em que se insere também. E prossegue na violência ao
instrumento de luta do Duque, a espada, depois o cavalo, depois o pedestal. A
espada oxidou-se, enferrujou-se, perdeu o brilho, corroeu. A estátua gera
cansaço, desprezo e desrespeito total (o povo urina nela). O herói de bronze,
no seu caráter de indiferença e distância do povo (irretocável e irretorquível)
não suscita afeto, assim como as lições das “cansadas professoras que não
acreditam no que mandam decorar”.
No trecho o
narrador aproxima o contexto de sua homenagem ao momento de ‘crise’ já
apresentado por Rosenfeld, em que “o desejo impregna-se de força virulenta”. É
a crise da democracia, a crise da perspectiva de igualdade e justiça, já que a
ditadura militar, especialmente depois do AI5, além de privar a população de
liberdade, apresentou os maiores índices de desigualdade na distribuição de
renda até então registrados. E apresentou uma propaganda, de que fala o
sociólogo Florestan Fernandes, criadora da imagem de país em grande
desenvolvimento, crescimento econômico (‘o milagre econômico’), sem deixar
claro a quem esses atributos estariam beneficiando. E as professoras
mencionadas seriam instrumentos dessa
manipulação ao terem que ministrar aulas que se encaixassem dentro do padrão
propagandístico enganoso.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo.
Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e
desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
No trecho acima,
que prossegue a crônica, o narrador se afasta de seu objeto ‘Duque de
Caxias/estátua’ para retornar ao Sargento Sílvio novamente. Esse retorno vem
carregado de significados, na medida em que utiliza várias comparações para
identificar o Sargento ao povo, e contrastá-lo com a instituição militar, que
castiga o povo. A individualidade do herói grego é aqui retomada e retirada. Se
mantém em relação à corporação militar, e se perde na identificação com o povo.
Sílvio seria alguém que não se pauta pelo
esnobismo militar, pelo culto à vaidade, à ostentação, ao uso irregular do
dinheiro público, à irresponsabilidade, insensibilidade dos governantes
militares. Para fechar o contraste, Sílvio é de carne e sangue, retomando a
oposição com o frio metal dos outros militares. A perda da dita individualidade
‘grega’ na aproximação do Sargento com a coletividade povo também não é total,
já que ele seria um herói morto, enquanto o resto do povo permanece vivo e
acuado. Ele se isola novamente, mas em sintonia com o povo. Esse movimento fica
claro no trecho final:
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito
depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.
O Sargento
seria, segundo o trecho, parte do povo, porém foi além dele, fazendo o que o
povo não foi capaz. Não foi capaz de reconhecer essa irmandade antes da sua
morte, não foi capaz de reproduzir o ato
de bravura, de salvamento. E a constatação disso fecha o texto com a culpa dos
que não foram heróis. Traz um interessante deslocamento ao repentinamente
dirigir-se ao próprio sargento Sílvio (“É isso, sargento...”), para
aparentemente voltar ao direcionamento anterior, em que Sílvio é terceira pessoa,
antes de concluir o trecho. Termina focalizando a última palavra colocada no
título: ‘nós’. Aqui o ato de bravura se reveste de ambiguidade: não seria
apenas o salvamento do sargento pelo povo, ao retirá-lo do poço, podendo ser
também o salvamento do país, impedindo o golpe com atitudes anteriores, ou uma
grande passeata como reação a ele. A passividade do povo é aludida de forma
dolorosa, e nesse conceito de povo, o narrador parece incluir setores da classe
média, já que se coloca junto. A passividade da classe média nesse caso é a que
mais causa remorso, sendo uma classe que teve acesso à educação e que pôde
desenvolver condições de defesa contra a propaganda geradora de conformação. No
entanto, após 1968, a classe média não desenvolveu formas diretas de resistência
pelo alto preço que pagaria diante do endurecimento militar. Nesse sentido, ela
permaneceu passiva, com algumas exceções que aderiram à luta armada e que não
obtiveram sucesso. Houve, é certo, formas de resistência indireta, como, por
exemplo, letras de música e algumas peças
de Chico Buarque, que se valiam da ambiguidade, e com isso burlavam a censura.
O narrador da crônica identifica-se com o escritor Lourenço
Diaféria, mas não precisa restringir essa identificação e ele. Na realidade,
ele aspira uma identificação com cada leitor, e a utilização insistente do
‘Nós’, da primeira pessoa no plural, das palavras ‘povo’, ‘todos’, ‘irmãos’
indicam essa pretensão. Porém a sua relação direta com o próprio autor adquire
contornos bem significativos neste caso. O cronista estaria enlevado pelo ato
de bravura do sargento e culpado pela sua própria passividade diante da
situação política ao colocar suas angústias no papel e publicá-las. Em parte
conscientemente, mas não sabemos se totalmente, Diaféria fez ele também um ato
de bravura ao dirigir críticas severas
aos militares, que sabia serem ‘irretocáveis e irretorquíveis’. E o mundo
explodiu para ele. Se o fez pela inconsciência do perigo, ‘que se lixem’. Embora
não tenha tido que entregar a vida, teve que entregar parte da liberdade, pois
ficou preso por cinco dias na Polícia Federal em São Paulo e teve que responder
a processo por ofensa às forças armadas. O primeiro juiz que avaliou a
denúncia, em janeiro de 78, absolveu o cronista; porém a procuradoria Militar
recorreu da sentença e ele foi a julgamento que resultou na sua absolvição pela
2ª auditoria militar. Outro procurador recorreu e ele então foi condenado a
oito meses de prisão. Desta vez seu
advogado é quem recorreu e, somente em fevereiro de 1980, o S.T.F.
restabeleceria a primeira absolvição[10]. Nestes dois anos e meio, ele perderia o emprego na Folha de São
Paulo, por pressão política, e só o
teria de volta anos depois:
“Lembro sua cara transtornada
pela injustiça que sofreu, pois foi preso e processado. Em retaliação, Tarso de
Castro publicou o espaço do cronista totalmente em branco, o que foi
considerado uma ofensa ainda mais grave pelos ditadores. Na redação, choveu
telefonemas dos leitores. Todos diziam a mesma coisa: “Se Lourenço Diaféria sair,
suspendo minha assinatura ou então, deixo de comprar o jornal, pois eu só tenho
a Folha na minha casa para ler o cronista”. Fiquei impressionado pelo carisma,
a penetração, o prestígio, a grandeza do nosso herói dos textos diários. Mudei
complemente meu conceito. Eu sempre lia sua crônica, mas pessoalmente tinha
preconceitos, que sumiram nesses dias. Diaféria era o cara e nós, uns apagados
escribas insubordinados, mas submissos.”[11]
Nesse relato, a
palavra herói é dirigida ao cronista. Afinal, ele sacrificou seu emprego, sua
segurança, em nome de uma convicção, de uma não passividade, deixando desta vez
os outros a admirá-lo e a sentirem remorso, exatamente como havia feito com o
Sargento Sílvio. Após os incidentes que sofreu, ele passa a ser o herói, embora
numa categoria menos radical, a daqueles que não entregam a vida, mas entregam
o conforto conquistado na vida.
A
crônica “Herói. Morto. Nós.” analisada, utiliza-se de recursos de quebras de
discurso que assemelham-se às quebras de versos na poesia, explorando ‘versos’
longos e curtos, variando assim o ritmo. As imagens oferecidas também são
dotadas de poder poético e de alusões ambiguas e sugestivas. Os silêncios e
espaços em branco criados pela pausa, pelos pontos finais, pelos pulos de
linha, se estabelecem já a partir do título e se prolongam até o fim, em vários
pontos de maneira brusca. A grande frequência de travessões, isolando partes do
texto, a repetição de certos termos chave, tudo isso cria a sensação de
mutilação, de abertura para o espaço irracional das emoções, de perda das
palavras pela indignação diante do desvendamento de vários problemas. O impulso
do cronista aí se parece com o impulso do romancista, que, segundo Adorno:
“O impulso característico do romance, a
tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de
captar a essência, que por sua vez aparece como algo assustador e duplamente
estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenções
sociais. O momento antirealista do romance moderno, sua dimensão metafísica,
amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens
estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência estética
reflete-se o desencantamento do mundo”[12]
O desencantamento
do mundo se produziria diante dos problemas suscitados na crônica: o autoritarismo da relação povo/governantes na
ditadura e a inexistência de compromisso real desses governantes pela proteção
e bem estar do povo; a necessidade de heróis ou de santos para suprir carências
profundas; o contraste herói anônimo de sangue/ herói oficial de bronze; o
desvendamento da passividade/submissão do povo diante de suas carências. São
todos problemas oferecidos ao leitor com grande impacto e a tensão própria
exigida pela ‘essência assustadora’ captada dos temas propostos.
Bibliografia:
ADORNO,
Theodor W. “Posição do narrador no romande contemporâneo” in Notas de
Literatura. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2003.
BIGNOTTO,
Cilza; JAFFE, Noemi. “Crônica: Jornalismo e Política 1850-100 (1964) unidade
2” in Crônica na sala de aula: material de apoio ao professor.
Apresentação Marisa Lajolo. 2 ed., São Paulo: Itaú Cultural, 2004.
CÂNDIDO,
A. “A vida ao rés do chão” in A Crônica. O gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. Campinas, S.P: Editora da Unicamp; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
DIAFÉRIA, Lourenço.
“Herói. Morto. Nós.” - Folha de São Paulo, 10 de setembro de 1977. http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/tempos_cruciais-02a.shtml (último acesso em 05/08/2010)
DUCLÓS,
Nei. “Lourenço Diaféria: a crônica em branco.”, 12/2009 in http://www.consciencia.org/neiduclos/lourenco-diaferia-a-cronica-em-branco (último acesso em 05/08/2010)
ROSENFELD,
A. “Heróis e Coringas” in O mito e o herói no moderno Teatro Brasileiro.
São Paulo: Perspectiva, 1982.
Sem autor
especificado - “Supremo revoga a condenação de Diaféria (3 a 1)” - Folha de
São Paulo, 13/02/1980; in http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil2_13fev1980.htm (último acesso em 05/08/2010)
[1] Ambas as citações feitas por
ROSENFELD, A, 1982.
[2] Cf. DUCLÓS, Nei.
12/2009.
[3] Cândido, A. 1992.
[4] DUCLÓS, Nei.
“Lourenço Diaféria: a crônica em branco.”, 12/2009 .
[5] BIGNOTTO, Cilza; JAFFE, Noemi.
2004. p. 40.
[6] ROSENFELD, A. 1982.
p. 35/36.
[7] DIAFÉRIA, L. Folha de São Paulo, 10 de
setembro de 1977.
[8] ROSENFELD, A. 1982.
(citação de HEGEL, G.W.F.: Aesthetik, Berlim, Editora Aufbau, 1955. p 208/209)
“Os heróis gregos, bem ao contrário, são
indivíduos que, a partir da autonomia de seu caráter e arbítrio, se encarregam
e realizam o todo de uma ação e no caso dos quais, por isso mesmo a ação, mercê
da qual executam o justo e moral, se afigura como etos individual. Esta unidade
imediata do substancial e da individualidade, da inclinação, dos impulsos, do
querer, reside na virtude grega, de modo que a individualidade é a sua própria
lei; não é sujeita a uma lei, sentença ou a um tribunal que existissem por si
mesmos” (Hegel, p. 208/209)
[9] ROSENFELD, A. 1982. (citação de HEGEL,
G.W.F.: Aesthetik, Berlim, Editora Aufbau, 1955. p 215, 216)
[10] Cf. Supremo revoga
a condenação de Diaféria (3 a 1) in Folha de São Paulo, 13/02/1980. In http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil2_13fev1980.htm (último acesso em 05/08/2010)
[11] DUCLÓS, Nei. “Lourenço Diaféria: a crônica
em branco.”, 12/2009
[12] ADORNO, T. 2003.