terça-feira, 8 de abril de 2014

A ditadura e os heróis


 
 coluna em branco no espaço de Lourenço Diaféria (16/09/1977)


Ensaio apresentado ao 'Programa de pós graduaçao em literatura brasileira'
Disciplina: O narrador na Literatura Brasileira. Formas narrativas e mudanças sociais (1960-2000)
Prof. Jaime Guinsburg       USP – FFLCH – DLCV            01/08/2010
Cecilia Silva Furquim Marinho


A DITADURA E OS HERÓIS

“Feliz o povo que não tem heróis” (Brecht)

“Nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis” (Augusto Boal)[1]


A crônica de Lourenço Diaféria, “Herói. Morto. Nós.”, publicada em 1977 no jornal “Folha de São Paulo” alude à necessidade de heróis, a empatia com heróis, com toda a angústia que essa necessidade suscita, bem como a catarse que ela provoca; além de criar espaço de incertezas, de algo inacabado, mutilado a partir do tratamento da ambiguidade que a palavra comporta e das técnicas narrativas que usa.  É uma obra que pega o leitor desprevenido nesse espaço ao rés do chão, que é o espaço da crônica, no papel prosaico de jornal, cheio de sujeira e banalidades. É de lá que, de repente, uma convulsão surge e modifica o estado, a respiração, o batimento cardíaco do leitor. Com linguagem típica das crônicas, próxima, direta, popular, o texto de Diaféria, no entanto, surpreende pela seriedade que assume diante de seu objeto. Não recorre ao humor, nem à leveza: é dura e grave.

Diaféria, que fora sempre e somente jornalista, foi comparado à Rubem Braga, pelo fato de não ter se aventurado em gêneros literários mais nobres[2]. Ficaram ambos na despretenciosa e por isso grande humanidade da crônica, segundo atribuições de Antonio Cândido[3]. Iniciou sua carreira de preparador de matérias em 56, e de cronista em 64. Em 77 continuava no mesmo jornal ‘A Folha de São Paulo’ e tinha prestígio  e aceitação entre os leitores e os colegas de redação. Era, segundo um deles, uma pessoa leve:


                            Eu estava lá, posso contar. Trabalhei na Folha por dois anos e meio na segunda metade da década de 1970. Diaféria era o chamado boa-praça, sempre sorridente, de grande talento, querido por todos. Nós, metidos a revolucionários, que fazíamos parte da troupe do editor Tarso de Castro, achávamos até que ele era leve demais, pois estávamos em plena ditadura civil-militar. Nem sabíamos a porcaria em que ia se transformar o país nos anos seguintes. Deveríamos era agradecer aos céus por termos perto, todos os dias, o cronista da cidade, com uma popularidade que testemunhei pessoalmente, pois nesse momento o mundo explodiu.[4]    


O mundo explodiu para o cronista e também um pouco para o jornal que o acolhia, a partir da reação gerada pela crônica em questão. Diaféria incomodou fundo os governantes militares, naquele 1º de setembro de 1977, com suas considerações a respeito do herói. Reconstituindo a crônica, ela a princípio se presta a homenagear um ato de bravura de um sargento que sacrificou sua vida para salvar uma criança, em passeio num zoológico de Brasília, acompanhado da mulher e dos filhos. O nome do sargento de 33 anos: Sílvio Delmar Holenbach. O garoto que havia caído no poço das ariranhas sobreviveu, mas seu salvador morreria dias depois em decorrência de uma infecção generalizada causada pelas mordidas dos animais. Esse ato, que foi explorado pelos jornais, impressionou deveras o cronista que já começa intitulando seu texto de forma inusitada: “Herói. Morto. Nós.” As três pausas que se dão  pelo uso dos três pontos finais já antecipam uma linha expressiva textual que vai ser explorada até o fim, e que vai se apoiar intensamente na alternância entre pausa e linguagem, o silêncio e o ruído decorrente delas. A análise  feita por Cilza Bignotto e Noemi Jaffe capta outros importantes significados do título:


“... o uso dos três pontos finais e a disposição das palavras “Herói”, “Morto” e “Nós” podem ser analisados como    prenúncio da idéia principal do texto, a de que o herói está separado de nós pela morte. Herói é substantivo; morto, adjetivo; nós, pronome. Se pensarmos que os pronomes são usados em função dos nomes, podemos dizer que “nós” está em função de “herói”, mas apenas quando o herói tem a qualidade de estar “morto”. A morte nos separa irremediavelmente do herói, a quem só conhecemos depois de morto. Os pontos não são de interrogação, ou de exclamação, ou vírgulas; são pontos finais, o que enfatiza a noção de morte, fim.”[5]


A noção de herói, lançada dessa forma, especifica que trata-se daquele que dá a vida pelo outro, o que o diferencia de outros tipos de heróis. Aqueles que se notabilizam, que despertam admiração, que se arriscam, sem, no entanto, perder a vida, podem também ser qualificados pelo mesmo termo. Mas esse que será homenageado, esse é do tipo que entregou a vida, sem recebê-la de volta.  Essa particularidade já produz uma série de implicações. Não se trata de meio termo: é vida e morte, e morte que produz vida. São instâncias puras que evidenciam, por comparação, a impureza do estado da grande maioria misturada, os indivíduos normais.  Que fascinam esses indivíduos normais pela grandeza que eles não tem; e que geram alívio nesses mesmos indivíduos, por não terem essa grandeza que cobra preço tão alto.   Eles se purificam por empréstimo, um pouquinho, pela funda empatia que estabelecem com o herói, mas podendo em seguida, com uma pitada de culpa e alegria, voltar a suas vidas impuras que valorizam e que não estão oferecendo a ninguém, para, inclusive, poderem se regozijar na celebração da vida que o herói produziu, no caso: a vida do garoto.  Algo próximo da catarse. Não é à toa que os mitos eram matéria por excelência da experiência artística trágica e épica nas Civilizações antigas e que seu heroísmo ajudava a definir os gêneros.  Considerações a respeito do herói mítico, feitas por Anatol Rosenfeld, são bastante pertinentes:   

“A imaginação mítica é, ademais, profundamente irracional; não há mito racional. O substrato do mito não são, como vimos, pensamentos e sim emoções. É a unidade do sentimento que substitui a coerência lógica. O mito é um modo de organizar as emoções mais veementes, é projeção de temores, de angústias, de wishful thinking, de esperanças fundamente arraigadas. O herói mítico é a personificação de desejos coletivos. Em tempos de crise, este desejo impregna-se de força virulenta e projeta a imagem plástica e individual das esperanças em forma de personificação. Na criação do herói mítico prevalece a crença primitiva de que todos os poderes humanos e naturais podem condensar-se numa só personalidade excepcional. Quando em amplos grupos se manifesta a esperança coletiva com intensidade máxima, eles facilmente podem ser convencidos de que só se necessita da vinda do homem providencial para satisfazer todas as aspirações.”[6]


                  O Brasil do século XX não é exatamente lugar nem tempo para heróis míticos. O sargento seria um herói prosaico, diminuído, um pálido resquício desse herói mítico. Porém, por incrível que pareça, tem algo dele. E por isso o narrador inicia seu primeiro parágrafo já se defendendo da possível desqualificação que o sargento poderia receber:  


Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.
[7]


O herói mítico, sendo produto da imaginação ficcional ou da projeção irracional dos desejos coletivos, não seria tido como real. É preciso então negar a inexistência dele, “com todas as letras”. Por outro lado, o narrador sugere o desgaste da palavra ‘herói’, indicando que sua suposta ‘inexistência’ não impede que a palavra tenha ampla circulação, aderência a diversos tipos de usos, possuindo uma existência simbólica inegável, cuja apropriação, apesar de comum, o autor não pode evitar. Em seguida, ele faz menção ao uso da palavra que está associada ao heroísmo militar: morrer na guerra, disparar tiro; e também ao heroísmo dos mártires políticos, como Tiradentes, que morreu enforcado. Nenhum desses é o caso do Sargento Sílvio, e o autor considera isso uma qualidade: “tanto melhor”. Esse não enquadramento do Sargento na modalidade de herói militar e o descaso pela modalidade, que será seriamente retomado na continuação da crônica, tem sustentação em Hegel. No livro O mito e o herói no moderno teatro brasileiro, Anatol Rosenfeld cita afirmações do filósofo de que o herói grego teria responsabilidade individual (‘etos individual’) pela execução de seus atos heróicos[8], diferentemente da tentativa de reconstrução do herói no tempo prosaico, que não obteria o mesmo  efeito pelo fato do sujeito ter sua substância alienada na aderência à sociedade burguesa. Nela, seriam o estado ou a coletividade os responsáveis finais pelos atos, sendo os homens que os veicularam substituíveis. Seguindo esse raciocínio, o filósofo não exclui nem os monarcas nem os militares da incapacidade de reconstrução do herói moderno:  


“Os monarcas já não são ... o ápice em si concreto do todo, mas um centro mais ou menos abstrato dentro das instituições já por si desenvolvidas e fixadas pela lei e constituição... Da mesma forma um general ou mesmo um marechal certamente ainda têm grande poder: fins e interesses essenciais entregam às suas mãos e sua visão clara, coragem e vontade decidem sobre as coisas mais importantes; ainda assim, aquilo que nesta decisão se deve atribuir ao seu caráter subjetivo, como âmago pessoal dele, é de amplitude pequena. Pois de um lado os fins já lhe são dados e encontram a sua origem – ao invés de na sua individualidade – em circunstâncias exteriores ao âmbito do seu poder; de outro lado, tampouco produz por si mesmo os meios para executar estes fins; ao contrário, os meios lhe são fornecidos, visto não serem do seu domínio e não se subordinarem à sua personalidade....”[9]


              Seria então o fato do sargento não se enquadrar nestas categorias, uma afirmação da sua individualidade na escolha pelo salvamento? Ele, apesar de ser militar, não estava em serviço, não agiu em nome da corporação, das missões institucionais, não usou as armas que esta corporação lhe forneceu. Estava ali o Sílvio apenas, em uma individualidade que seria um pouco mais próxima daquela do herói grego de Hegel. O narrador da crônica não compartilha, então, da idéia Hegeliana de impossibilidade de reconstrução desse herói nos tempos modernos, apesar das muitas características diferentes que os separam.  

             

Em seguida, o narrador se defende novamente de uma outra possível acusação ao heroísmo do sargento: seu ato seria fruto da inconsciência do perigo. Nesse momento o narrador não apresenta mais nenhum dos argumento racionais de que se valeu anteriormente. Assume o caráter irracional da busca do herói, compara-o a outra busca irracional, a religiosa. Ao fazer a comparação, abraça o significado mítico do herói, sem rodeios, ao dizer que ele “redime a humanidade à deriva”. Acena para a outra opção do Sargento Sílvio: continuar vivo pai de família, acabar capitão, major, totalmente inserido na sociedade civil, militar, política, livre de perigos. Volta ao risco que realmente assumiu e que o separa de tudo isso: “Está morto”. “Um belíssimo sargento morto.” Nesse primeiro trecho da crônica selecionado, chama a atenção a repetição das palavras ‘herói’ (4 vezes) e ‘morto’ (2 vezes), bem como as derivações ‘heroísmo’ e ‘morreu’. Essas repetições remetem às duas primeiras palavras do título, num eco amplificado. As pausas produzidas pelos pontos finais do título se mantém e se intensificam no decorrer do texto acompanhadas pelas pausas de mudanças de parágrafos, que ocorrem antes do momento natural, com intensidade ainda maior no fim do trecho no parágrafo mínimo: “Está morto.” E o espaço dado nestas mudanças cria vazios visuais que acompanham os vazios sonoros. Tudo contribuindo para  criar a atmosfera de impacto diante da experiência limite que se expressa mais no silêncio que na palavra. Esse recurso porém será mais explorado ainda no trecho que segue: 


“E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.”


O corte brusco após a conjunção, para depois retomá-la no parágrafo seguinte e concluir a idéia cria um suspense que se justifica plenamente. A partir dessa conjunção a crônica saltará para um outro patamar, levando o leitor e até o destino do cronista a outro nível de problema. A idéia que aparece por contraste à homenagem feita anteriormente contextualiza essa homenagem através do ataque, da inferiorização da categoria de herói militar, aquela mesma que ele havia antecipado não pertencer o Sargento Sílvio. E cita um nome que representaria essa categoria: Duque de Caxias, um herói militar que, por ter sido um dos mais importantes militares da história do Brasil, fora condecorado pelo governo federal,  em 1962, o ‘patrono do Exército brasileiro’. Esse patrono foi um militar conservador, que lutou e silenciou movimentos populares durante sua carreira, tendo adquirido o posto de Duque às custas da defesa das classes dominantes. Ninguém melhor do que ele para representar os militares daquele momento histórico. O ataque do narrador começa mais suave, pela afirmação “com todas as letras” de que a categoria de Sílvio seria preferível, para depois assumir uma violência crítica ao reduzir Duque de Caxias a uma estátua, no sentido negativo. A estátua, que inicialmente é erigida para engrandecer uma figura humana, para prolongar a sua imagem através dos tempos, agora se mostra num outro ângulo: seu material a torna fria, dura, despida de humanidade, indiferente na ausência de interação com aqueles que a rodeiam.  E esses que a rodeiam são identificados como sendo os ciganos e as pombas, seres despidos de prestígio, invizíveis, marginalizados na paisagem social. Em seguida o narrador faz menção ao povo como coletividade em que se insere também. E prossegue na violência ao instrumento de luta do Duque, a espada, depois o cavalo, depois o pedestal. A espada oxidou-se, enferrujou-se, perdeu o brilho, corroeu. A estátua gera cansaço, desprezo e desrespeito total (o povo urina nela). O herói de bronze, no seu caráter de indiferença e distância do povo (irretocável e irretorquível) não suscita afeto, assim como as lições das “cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar”.


No trecho o narrador aproxima o contexto de sua homenagem ao momento de ‘crise’ já apresentado por Rosenfeld, em que “o desejo impregna-se de força virulenta”. É a crise da democracia, a crise da perspectiva de igualdade e justiça, já que a ditadura militar, especialmente depois do AI5, além de privar a população de liberdade, apresentou os maiores índices de desigualdade na distribuição de renda até então registrados. E apresentou uma propaganda, de que fala o sociólogo Florestan Fernandes, criadora da imagem de país em grande desenvolvimento, crescimento econômico (‘o milagre econômico’), sem deixar claro a quem esses atributos estariam beneficiando. E as professoras mencionadas  seriam instrumentos dessa manipulação ao terem que ministrar aulas que se encaixassem dentro do padrão propagandístico enganoso.


O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.



No trecho acima, que prossegue a crônica, o narrador se afasta de seu objeto ‘Duque de Caxias/estátua’ para retornar ao Sargento Sílvio novamente. Esse retorno vem carregado de significados, na medida em que utiliza várias comparações para identificar o Sargento ao povo, e contrastá-lo com a instituição militar, que castiga o povo. A individualidade do herói grego é aqui retomada e retirada. Se mantém em relação à corporação militar, e se perde na identificação com o povo. Sílvio seria  alguém que não se pauta pelo esnobismo militar, pelo culto à vaidade, à ostentação, ao uso irregular do dinheiro público, à irresponsabilidade, insensibilidade dos governantes militares. Para fechar o contraste, Sílvio é de carne e sangue, retomando a oposição com o frio metal dos outros militares. A perda da dita individualidade ‘grega’ na aproximação do Sargento com a coletividade povo também não é total, já que ele seria um herói morto, enquanto o resto do povo permanece vivo e acuado. Ele se isola novamente, mas em sintonia com o povo. Esse movimento fica claro no trecho final:


Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.


O Sargento seria, segundo o trecho, parte do povo, porém foi além dele, fazendo o que o povo não foi capaz. Não foi capaz de reconhecer essa irmandade antes da sua morte, não foi capaz de  reproduzir o ato de bravura, de salvamento. E a constatação disso fecha o texto com a culpa dos que não foram heróis. Traz um interessante deslocamento ao repentinamente dirigir-se ao próprio sargento Sílvio (“É isso, sargento...”), para aparentemente voltar ao direcionamento anterior, em que Sílvio é terceira pessoa, antes de concluir o trecho. Termina focalizando a última palavra colocada no título: ‘nós’. Aqui o ato de bravura se reveste de ambiguidade: não seria apenas o salvamento do sargento pelo povo, ao retirá-lo do poço, podendo ser também o salvamento do país, impedindo o golpe com atitudes anteriores, ou uma grande passeata como reação a ele. A passividade do povo é aludida de forma dolorosa, e nesse conceito de povo, o narrador parece incluir setores da classe média, já que se coloca junto. A passividade da classe média nesse caso é a que mais causa remorso, sendo uma classe que teve acesso à educação e que pôde desenvolver condições de defesa contra a propaganda geradora de conformação. No entanto, após 1968, a classe média não desenvolveu formas diretas de resistência pelo alto preço que pagaria diante do endurecimento militar. Nesse sentido, ela permaneceu passiva, com algumas exceções que aderiram à luta armada e que não obtiveram sucesso. Houve, é certo, formas de resistência indireta, como, por exemplo, letras de música e  algumas peças de Chico Buarque, que se valiam da ambiguidade, e com isso burlavam a censura.


O narrador da crônica identifica-se com o escritor Lourenço Diaféria, mas não precisa restringir essa identificação e ele. Na realidade, ele aspira uma identificação com cada leitor, e a utilização insistente do ‘Nós’, da primeira pessoa no plural, das palavras ‘povo’, ‘todos’, ‘irmãos’ indicam essa pretensão. Porém a sua relação direta com o próprio autor adquire contornos bem significativos neste caso. O cronista estaria enlevado pelo ato de bravura do sargento e culpado pela sua própria passividade diante da situação política ao colocar suas angústias no papel e publicá-las. Em parte conscientemente, mas não sabemos se totalmente, Diaféria fez ele também um ato de bravura ao dirigir críticas  severas aos militares, que sabia serem ‘irretocáveis e irretorquíveis’. E o mundo explodiu para ele. Se o fez pela inconsciência do perigo, ‘que se lixem’. Embora não tenha tido que entregar a vida, teve que entregar parte da liberdade, pois ficou preso por cinco dias na Polícia Federal em São Paulo e teve que responder a processo por ofensa às forças armadas. O primeiro juiz que avaliou a denúncia, em janeiro de 78, absolveu o cronista; porém a procuradoria Militar recorreu da sentença e ele foi a julgamento que resultou na sua absolvição pela 2ª auditoria militar. Outro procurador recorreu e ele então foi condenado a oito  meses de prisão. Desta vez seu advogado é quem recorreu e, somente em fevereiro de 1980, o S.T.F. restabeleceria a primeira absolvição[10]. Nestes dois anos e meio, ele perderia o emprego na Folha de São Paulo, por  pressão política, e só o teria de volta anos depois:

“Lembro sua cara transtornada pela injustiça que sofreu, pois foi preso e processado. Em retaliação, Tarso de Castro publicou o espaço do cronista totalmente em branco, o que foi considerado uma ofensa ainda mais grave pelos ditadores. Na redação, choveu telefonemas dos leitores. Todos diziam a mesma coisa: “Se Lourenço Diaféria sair, suspendo minha assinatura ou então, deixo de comprar o jornal, pois eu só tenho a Folha na minha casa para ler o cronista”. Fiquei impressionado pelo carisma, a penetração, o prestígio, a grandeza do nosso herói dos textos diários. Mudei complemente meu conceito. Eu sempre lia sua crônica, mas pessoalmente tinha preconceitos, que sumiram nesses dias. Diaféria era o cara e nós, uns apagados escribas insubordinados, mas submissos.”[11]


Nesse relato, a palavra herói é dirigida ao cronista. Afinal, ele sacrificou seu emprego, sua segurança, em nome de uma convicção, de uma não passividade, deixando desta vez os outros a admirá-lo e a sentirem remorso, exatamente como havia feito com o Sargento Sílvio. Após os incidentes que sofreu, ele passa a ser o herói, embora numa categoria menos radical, a daqueles que não entregam a vida, mas entregam o conforto conquistado na vida.


              A crônica “Herói. Morto. Nós.” analisada, utiliza-se de recursos de quebras de discurso que assemelham-se às quebras de versos na poesia, explorando ‘versos’ longos e curtos, variando assim o ritmo. As imagens oferecidas também são dotadas de poder poético e de alusões ambiguas e sugestivas. Os silêncios e espaços em branco criados pela pausa, pelos pontos finais, pelos pulos de linha, se estabelecem já a partir do título e se prolongam até o fim, em vários pontos de maneira brusca. A grande frequência de travessões, isolando partes do texto, a repetição de certos termos chave, tudo isso cria a sensação de mutilação, de abertura para o espaço irracional das emoções, de perda das palavras pela indignação diante do desvendamento de vários problemas. O impulso do cronista aí se parece com o impulso do romancista, que, segundo Adorno:


“O impulso característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais. O momento antirealista do romance moderno, sua dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo”[12]


O desencantamento do mundo se produziria diante dos problemas suscitados na crônica:  o autoritarismo da relação povo/governantes na ditadura e a inexistência de compromisso real desses governantes pela proteção e bem estar do povo; a necessidade de heróis ou de santos para suprir carências profundas; o contraste herói anônimo de sangue/ herói oficial de bronze; o desvendamento da passividade/submissão do povo diante de suas carências.   São todos problemas oferecidos ao leitor com grande impacto e a tensão própria exigida pela ‘essência assustadora’ captada dos temas propostos.






Bibliografia:





ADORNO, Theodor W. “Posição do narrador no romande contemporâneo” in Notas de Literatura. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2003.


BIGNOTTO, Cilza; JAFFE, Noemi. “Crônica: Jornalismo e Política 1850-100 (1964) unidade 2” in Crônica na sala de aula: material de apoio ao professor. Apresentação Marisa Lajolo. 2 ed., São Paulo: Itaú Cultural, 2004.


CÂNDIDO, A. “A vida ao rés do chão” in A Crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, S.P: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. 

DIAFÉRIA, Lourenço. “Herói. Morto. Nós.” - Folha de São Paulo, 10 de setembro de 1977.  http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/tempos_cruciais-02a.shtml (último acesso em 05/08/2010)


DUCLÓS, Nei. “Lourenço Diaféria: a crônica em branco.”, 12/2009 in http://www.consciencia.org/neiduclos/lourenco-diaferia-a-cronica-em-branco (último acesso em 05/08/2010)


ROSENFELD, A. “Heróis e Coringas” in O mito e o herói no moderno Teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1982.


Sem autor especificado - “Supremo revoga a condenação de Diaféria (3 a 1)” - Folha de São Paulo, 13/02/1980; in http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil2_13fev1980.htm (último acesso em 05/08/2010)








[1] Ambas as citações feitas por ROSENFELD, A, 1982.
[2] Cf. DUCLÓS, Nei. 12/2009.
[3] Cândido, A. 1992. 
[4] DUCLÓS, Nei. “Lourenço Diaféria: a crônica em branco.”, 12/2009 .
[5] BIGNOTTO, Cilza; JAFFE, Noemi. 2004. p. 40.
[6] ROSENFELD, A. 1982. p. 35/36.
[7] DIAFÉRIA, L. Folha de São Paulo, 10 de setembro de 1977.
[8] ROSENFELD, A. 1982. (citação de HEGEL, G.W.F.: Aesthetik, Berlim, Editora Aufbau, 1955. p 208/209)
 “Os heróis gregos, bem ao contrário, são indivíduos que, a partir da autonomia de seu caráter e arbítrio, se encarregam e realizam o todo de uma ação e no caso dos quais, por isso mesmo a ação, mercê da qual executam o justo e moral, se afigura como etos individual. Esta unidade imediata do substancial e da individualidade, da inclinação, dos impulsos, do querer, reside na virtude grega, de modo que a individualidade é a sua própria lei; não é sujeita a uma lei, sentença ou a um tribunal que existissem por si mesmos” (Hegel, p. 208/209)
[9] ROSENFELD, A. 1982. (citação de HEGEL, G.W.F.: Aesthetik, Berlim, Editora Aufbau, 1955. p 215, 216)
[10] Cf. Supremo revoga a condenação de Diaféria (3 a 1) in Folha de São Paulo, 13/02/1980. In http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil2_13fev1980.htm (último acesso em 05/08/2010)
[11] DUCLÓS, Nei. “Lourenço Diaféria: a crônica em branco.”, 12/2009
[12] ADORNO, T. 2003.