Resenha apresentada ao 'Programa de pós graduaçao
em literatura brasileira'
Disciplina: O narrador na
Literatura Brasileira. Formas narrativas e
mudanças sociais (1960-2000)
Prof. Jaime Guinsburg USP – FFLCH – DLCV 01/08/2010
Cecilia Silva Furquim Marinho
FLORESTAN FERNANDES
E AS MUDANÇAS SOCIAIS
As ideologias ‘explicadoras’
do Brasil sofreram, segundo Dante Moreira Leite, uma virada nos anos 50 e
Florestan Fernandes foi um dos representantes deste momento. Leite sustenta, em
seu O Caráter Nacional Brasileiro[1],
que até então os ensaístas, historiadores e teóricos que procuravam interpretar
a condição do país tendiam a colocar explicações psicológicas como
determinantes do desenvolvimento histórico e social. A virada mencionada inverte a equação e desloca
o desenvolvimento histórico social de consequência para causa de tendências
comportamentais. A metodologia de análise sociológica passa a ser menos atraída
pela formulação intuitiva de grande impacto e mais comprometida com padrões
científicos, afetando não só os esquemas de pensamento como também a linguagem
utilizada em sua veiculação, valorizando a precisão vocabular.
Gilberto Freire e
Sérgio Buarque de Holanda precederam esta virada, contribuindo com uma forma de
análise em transição, ainda ligados a influências psicológicas, porém antecipando
algumas das conquistas de Florestan e sua geração, no que se refere à lucidez
de análise de alguns aspectos do processo de formação da sociedade. No entanto é a geração de Florestan quem
trará uma inovação mais radical produzindo um estudo aprofundado e minucioso
das características sociais de nosso país sob bases preponderantemente
científicas e, no caso de Florestan, a partir de uma perspectiva ética fortemente
descompromissada com as classes dominantes, contribuindo para o desmascaramento
de processos de manipulação social e política.
O livro de sua
autoria que será aqui analisado, Mudanças Sociais no Brasil, é de 1960 e
foi reeditado em 1974. No prefácio à primeira edição, Florestan afirma que o
trabalho possui estudos variados em temas, estilos, diretrizes de pensamento e
preocupações; tendo sido escritos entre 1943 e 1959. Já antecipa uma categoria
importante ao longo de suas reflexões: a diferenciação de duas estruturas que
coexistem no Brasil, a arcaica no campo e a evoluída nas cidades ou algumas
zonas rurais do Sul. Essa dupla existência pressupõe um grupo dominante que
procura prolongar o passado em seus pressupostos morais e ideológicos, por um
lado, e forjar o futuro por outro. A
metodologia que será adotada pelo sociólogo para análise é também explicitada
no prefácio como sendo o estudo sincrônico do presente de várias comunidades,
associando conhecimento empírico a fórmulas gerais e sua regularidade.
Além do prefácio,
o autor escreveu uma introdução denominada “Atitudes e motivações desfavoráveis
ao desenvolvimento”, que será deslocada para o posfácio na edição de 1974. Ao
reeditar o trabalho em plena ditadura, o autor considerou importante usar outra
introdução que pudesse contextualizar as reflexões do livro a partir da
perspectiva política que se operou com o regime militar. De qualquer forma a
primeira introdução se manteve no final do livro por conter importantes considerações
a respeito da forma como a sociedade de classes se estrutura num país
periférico como o Brasil, em contraste com a forma que ocorre nos países
hegemônicos. Segundo ele, as atitudes humanas da ordem capitalista se
estabelecem a partir das necessidades da sociedade de classes. Como trata-se de
uma ordem individualista e competitiva, os indivíduos ficam em tensão com os
outros, num equilíbrio instável, já que há incongruência entre moral e
organização e os mecanismos de ajuste social são contínuos. De acordo com a
teoria de Marx o conflito é um fator de desenvolvimento social; a classe
dominante se mobilizaria para defender o status
quo enquanto a classe subordinada procuraria alterá-lo. Florestan cita
então Freyer e Mannheim no aprofundamento deste conceito ao afirmarem que o
poder revolucionário do conflito perde a eficácia e impossibilita a mudança
social espontânea, ficando ela restrita aos casos em que puder ser dirigida e
provocada de forma racional. As possíveis reações de inconformação à desigualdade
tendem a ser sufocadas ou restringidas pelo uso da propaganda e manipulação que
criam fatores de conformismo, identificados pelo sociólogo como sendo um quadro
de atitudes irracionais[2].
Nos países subdesenvolvidos a coexistência da estrutura arcaica de castas e da sociedade
moderna de classes implica na importação prematura de técnicas, instituições e valores
sociais, gerando descompasso que intensifica o quadro irracional, se comparado
ao desenvolvimento dos países hegemônicos.
No capítulo que
trata dos “obstáculos extra econômicos à industrialização no Brasil” (escrito
em 1959[3]),
essa ‘importação prematura’ é retomada ao expor os problemas da expansão da
nossa empresa industrial. Tais problemas viriam a desgastar energias sem
produzir bons resultados. Muitas interpretações do Brasil de gerações
anteriores especulavam que a causa de tais insucessos seriam provindas da
‘inferioridade’ do mestiço, ou de peculiaridades das raças, de inclinações à
preguiça, moleza, falta de fibra do brasileiro. Segundo Florestan a causa seria
bem diversa: “sempre o seu horizonte intelectual permaneceu acanhado, estreito
e impotente diante de um destino histórico social captado por transplantação.”[4]
A interação com a máquina exigiria modelos de pensamento racionais que a
sociedade só desenvolve com lentidão, ao passo que estaríamos mergulhados em
modelos ‘pré-urbanos, pré-industriais, pré-mecânicos’ de organização da vida,
como podemos observar em poema de Drummond, de 1926:
“No elevador penso
na roça
Na roça penso no elevador”[5]
O desajustamento
do brasileiro é, para o sociólogo, do tipo “funcional”, e pode ser corrigido
com experiências socializadoras. São exemplos de aspectos que estimulam o
quadro irracional: a falta de humanização na forma de tratar o trabalhador,
padrões de mando e obediência da sociedade patrimonialista, o afã do ganho, a
necessidade de afirmar-se pela ostentação, a falta de incentivo da educação
científica e formação de profissionais qualificados, a utilização do ‘nacionalismo
econômico’ para esconder interesses particularistas, uso do poder para criar
uma ideologia do ‘progresso econômico’ como símbolo apenas, com fim em si mesmo
e defendido a qualquer preço, como a tolerância para importação de equipamento
obsoleto, uso de política protecionista sem aplicação de lucros em fins
produtivos e outros mecanismos.
Na nova
introdução, feita especialmente para a edição de 1974[6],
Florestan acentua que sentiu necessidade de incluir uma discussão que ganhou
importância depois do lançamento do livro: a questão da dependência e do
subdesenvolvimento. Ao falar da
dominação burguesa, frisa a pressão interna das classes dominantes que utilizam
uma máscara patriótica e democrática e ocultam autocracia sem limites; incluindo
também a pressão externa das nações hegemônicas e seu imperialismo. A relação dessa
burguesia com o Estado procura impor os privilégios de classe como sendo ‘interesses
da nação como um todo’, bem como usar o Estado como arma de opressão e
repressão. Diante do desgaste de certas propagandas (‘autonomia nacional’,
‘democracia liberal’, ‘nacionalismo econômico’), outros conceitos são forjados,
como o de ‘segurança nacional’, ‘milagre econômico’, ‘democracia forte’. Conclui
que o controle que mais facilmente garante espaço político e o ajustamento com
países hegemônicos é obtido pela ditadura, e foi exatamente isso que
vivenciamos, tendo o autor sofrido perseguição com sua aposentadoria
compulsória da universidade. O cientista social sugere, neste momento, que a
única forma de rompimento desse estado de coisas seria a revolução socialista. Sua
prévia crença no trabalho de sociologia crítica como impulso de conscientização
e de mudança gradual dos horizontes intelectuais mostrou ser uma ‘utopia’.
Nos capítulos
seguintes, outros aspectos são investigados, como por exemplo a constatação de
que falar em crise da democracia no Brasil não seria o termo adequado, já que o
Brasil democrático ainda não se constituiu, estaria em processo de elaboração,
numa etapa inicial (texto de 1954[7]).
Nesse processo verificou-se que os grandes movimentos da vida política, como a
independência, a república, a abolição da escravatura, não receberam apoio nem
inspiração popular, ocorrendo à revelia dessas camadas da população. Como saída
para o estabelecimento de uma estrutura social democrática, ele aponta a
importância da competição dos partidos e da influência positiva dos partidos
populares. A reforma educacional no sistema como um todo também seria uma
necessidade premente. Ao falar dos efeitos da nossa colonização (texto de 1946)[8]
ressalta a forte herança cultural do Português e do desenvolvimento
contrastante do litoral e do sertão, lembrando a característica etnocêntrica do
habitante litorâneo ‘civilizado’ e a manutenção do elemento folclórico no
sertão. Fala, em texto de 1954[9]
da identificação emocional com os países europeus, e em texto de 1959[10],
da realização incompleta ou deformada dos modelos europeus e das possibilidades
de cooperação que pode ocorrer entre Brasil e países do Oriente, que possuem situação
subdesenvolvida similar. Em outro texto de 1954[11],
comenta a formação da cidade de São Paulo, em que a vila primeiramente fora um
apêndice do campo para aos poucos atingir autonomia e desintegrar sua ordem
arcaica, despovoando o campo. Atinge posição dominante em relação ao litoral,
centralizando os contatos com o mercado externo, porém guardaria ainda alguns
traços da organização rural, como a nostalgia da vida heroica do passado e o
respeito pelas tradições. Em texto de 1948[12],
analisa o povoamento de São Paulo, através das alianças do Português com os
Tupiniquim. Em texto de 1959[13],
aponta o caráter desordenado de São Paulo, que propicia imensa desigualdade de
distribuição de renda, coexistência de luxo e pobreza, por um lado; e o grande
número de oportunidades de enriquecimento e ascensão social, por outro, através
de notável desenvolvimento da classe média, o que confere equilíbrio à
sociedade de classes. Segundo ele, a proletarização dos moradores pobres intensificou
a desintegração da cultura popular. Também ressalta no desenvolvimento da
cidade a substituição do voto de cabresto pela ‘demagogia’ para garantir a
manipulação da população e manutenção dos privilégios.
Carlos Guilherme
Mota, em seu livro Ideologia da Cultura Brasileira, identifica Florestan
Fernandes, juntamente com Antonio Cândido, como sendo representantes do
pensamento radical, sendo que Florestan criaria um “curto circuito de conceitos
precisos”, enquanto Cândido operaria um “percurso dialético entre literatura e
sociedade[14]”,
ambos criando espaços novos. Segundo ele, Fernandes se manteria distante de
posições nacionalistas (do grupo do ISEB), posições desenvolvimentistas (de
Celso Furtado) e do populismo. Em especial, no contexto dos anos 60 e 70, é
esclarecedora a atenção que o sociólogo voltou às atuações populistas criadoras
de um vínculo com o povo sem a verdadeira intenção de ajudá-lo a sair de sua
condição explorada e de grande miséria. Seu alerta dado ao uso da demagogia, da
propaganda, para anular as reações inconformadas da população chama a atenção
pela sua continuidade até hoje, com variações no discurso e substituição de
velhas palavras de ordem por outras ainda preservadas de desgaste. Podemos
analisar numa obra teatral dos anos 70[15],
como esta forma de manipulação foi representada:
Jasão: Não
fique pensando que o povo é nada,
Carneiro, boiada,
débil mental,
Pra lhe entregar
tudo de mão beijada
Quer o que? Tirar
doce de criança?
Não. Tem que
produzir uma esperança
De vez em quando
pra a coisa acalmar
E poder começar
tudo de novo
Então, é como
planta, o povo,
Pra poder colher,
tem que semear,
Chegou a hora de
regar um pouco
Ele já não lhe
deu tanto? Em ações,
Prédios, garagens, carros, caminhões,
Até usinas, negócios de louco...
Pois então? Precisa saber dosar
Os limites exatos da energia
Porque sem amanhã, sem alegria,
Um dia a pimenteira vai secar
Em vez de defrontar Egeu no peito,
Baixe os lucros um pouco e vá com jeito,
Bote um telefone, arrume uns espaços
Pras crianças poderem tomar sol
Construa um estádio de futebol,
Pinte o prédio, está caindo aos pedaços
Não fique esperando que o desgraçado
Que chega morto em casa do trabalho,
Morto, sim, vá ficar preocupado
Em fazer benfeitoria, caralho!
Com seus ganhos, o senhor é que tem
Que separar uma parte e fazer
Melhorias. Não precisa também
Ser o palácio da Alvorada, ser
Páreo pr’uma das sete maravilhas
Do mundo. Encha a fachada de pastilhas
Que eles já acham bom. Ao terminar,
Reúna com todos, sem exceção
E diga: ninguém mais tem prestação
Atrasada. Vamos arredondar
As contas e começar a contar
Só a partir de agora...
Creonte:
Enlouqueceu!
...
Jasão: O
senhor vai tomando
Essas providências que reacende
A chama. Vai
ver que o trabalho rende
Mais, daí
eles ganham confiança,
Alimentam
uma nova esperança,
O moral se
eleva, a tensão relaxa...
Aí é que o
senhor aumenta a taxa
Com as
melhorias eles vão ter
Energia
bastante pra mais dez
Anos, Dez
anos passam sem doer,
Sem jogar
pedra e sem bater os pés
Em um ano
só, um ano de aumento
Na taxa, o
senhor vai buscar, com sobras
O dinheiro,
gasto no empreendimento:
No telefone,
no jardim, nas obras,
No perdão às
prestações em atraso...
Agora, se
quiser ver, por acaso,
Quem ganhou
nesta simples transação
É só contar.
Eles lhe dão dez anos,
O senhor dá
um só pelos meus planos...
Fica com
nove, a parte do leão.
As melhorias
mencionadas no texto de Jasão oferecem benefícios superficiais para manter o
vínculo entre o dono do condomínio e os compradores endividados na busca de sua
casa própria. Eles continuariam a trabalhar muito para pagar o imóvel, com uma
margem de lucros que só beneficiaria o empresário, e teriam a ilusão de que o
esforço seria compensado pelos benefícios.
São medidas populistas, já que o termo ‘populismo’ indica algo
“fundamentalmente conciliador ...
raramente revolucionário.”[16],
que “exclui a luta de classes[17]”.
Também o termo foi utilizado por Roberto Schwarz, para criticar os movimentos
culturais de reação à ditadura militar, como o Arena, o Opinião. Em “Cultura e
Política – 1964-1968”, o crítico sugere que esses movimentos, ao proporem uma
conciliação entre as classes média e as classes destituídas estariam
superficialmente interessados na distribuição de renda e na democratização do
poder e dos privilégios, mas evitando assumir o radicalismo de um conflito de
classes que exigisse o abandono de suas posições confortáveis. Para ele o resultado
dessa conciliação enganosa somente contribuiu de alguma forma para que o regime
endurecesse na sua repressão e nas suas formas autoritárias, culminando com o
AI5. Daí sustentar que a reação dos grupos teatrais seria uma forma de
populismo demagógico de esquerda[18].
Isso indica que tanto os setores conservadores da classe média, como também os
setores de esquerda, tendem a se identificar com as classes dominantes e as
apoiar, ainda que inconscientemente, sendo vítimas de mecanismos populistas
deturpadores da realidade.
Outra questão
trazida por Florestan em seus estudos das mudanças sociais, que até hoje exige
reflexão e preocupação é a violência disfarçada ou assumida que acompanhou esse
processo de manipulação. Segundo ele, ao
falar da coerção evidente do estado forte e autoritário que se deu no regime
militar, lembra que essa coerção sempre existiu, mesmo em momentos de abertura
liberal democrática anterior, sob formas mascaradas, disfarçada por detrás dos
mecanismos irracionais. Nancy Baden, em The Muffled Cries[19],
também faz referência a esta violência disfarçada ao analisar o papel do escritor
no contexto da ditadura de 1964-1985. Mostra que suas resistências e
questionamentos políticos foram devidamente reprimidos, assim como havia
acontecido nas ditaduras anteriores de Vargas, indicando que essa repressão
persistiu depois de formas menos evidentes nos períodos de democracia, para
voltar na ditadura seguinte, atestando então, no campo das letras, a herança
autoritária constitutiva do Brasil, tanto assumida, quanto disfarçada. Prosseguindo
no tempo, a reflexão recebe contribuição de Paulo Sérgio Pinheiro, no texto
“Autoritarismo e transição[20]”,
em que analisa a situação do país quando houve a abertura política, a partir
dos anos 80, mostrando que aquele mascaramento de métodos autoritários apontado
por Fernandes e sugerido por Baden volta a se realizar plenamente em épocas
democráticas recentes, com formas de manipulação que garantem a continuidade do
aparelho repressor, presente na violência de microdimensões do poder. São
exemplos desses micropoderes repressores a cultura policial de tortura, as
chacinas, o racismo nas relações pessoais e outros. A violência ilegal
continuou com tolerância e impunidade ficando a sua crítica restrita ao
discurso e inexistente nas ações concretas de desestabilização de suas
práticas.
Um exemplo
recente de entrevista de 29/05/2010[21],
que atesta tanto a continuidade da violência nos dias atuais como sua
necessidade de passar desapercebida, está nas declarações do coronel Admir
Gervásio Moreira que assumia então o posto de novo corregedor da polícia
militar de São Paulo. O coronel em questão tinha como missão sanar problemas
constatados na polícia: responsabilidade por 40% da letalidade a mais no primeiro
trimestre de 2010, em comparação ao mesmo período em 2009. Além disso precisava
apurar os casos de policiais que haviam, juntamente com a sua equipe, torturado
e assassinado motoboys de ascendência negra sem nenhum motivo aparente. A
própria escolha do coronel para o posto foi planejada para criar um efeito
aparente de moralização, já que ele é negro. A comunidade esperaria então que
ele não assumisse nenhuma identificação com as práticas racistas da instituição
policial. No entanto, em suas declarações ele nega que essas práticas existam e
explica os acontecidos como sendo fruto de casos isolados de membros da
instituição, fechando os olhos para a recorrência assustadora desses ‘casos
isolados’. Demonstra em suas declarações estar totalmente
compromissado com a defesa de uma instituição violenta e racista, a despeito
disso ser contra sua própria origem. A atitude de negação e mascaramento indica
que a possibilidade dessas práticas terem uma modificação consistente são
mínimas:
...
Folha - Não
se ouvia falar de grupos de extermínio formados por PMs, como "Os
Highlanders". Esses casos já existiam e a gente não sabia disso?
Moreira - São casos
pontuais. É conduta individual. Não é conduta institucional. Não podemos dizer
que dentro da polícia existe isso. Dá uma conotação de que está instituído.
Não concordo. [São] Pessoas, com problemas graves, que não têm nenhum compromisso institucional.
Não concordo. [São] Pessoas, com problemas graves, que não têm nenhum compromisso institucional.
...
Folha - Essa
é uma questão que não preocupa o sr.? (a do aumento de 40% da letalidade)
Moreira - Em
princípio, não. Estamos equivalentes. De todos os confrontos, por exemplo, em
que há quatro indivíduos, um é baleado e três são presos. Nós não estamos mais
agressivos. Muito pelo contrário. Nosso oponente é que está muito mais ousado,
mais agressivo. Nós estamos prendendo muito mais do que matando.
...
Folha - A PM
é racista?
Moreira - Não
concordo piamente. Vamos tirar a figura do policial. Seria hipócrita se
dissesse que não há racismo no Brasil. A instituição PM não é racista.
Se verificar o nosso efetivo quase 140 mil homens e mulheres, da ativa e da inatividade, acredito que mais de 30% sejam negros ou têm a raça negra na sua origem. A instituição não é racista. O racismo está em cada pessoa.
Se verificar o nosso efetivo quase 140 mil homens e mulheres, da ativa e da inatividade, acredito que mais de 30% sejam negros ou têm a raça negra na sua origem. A instituição não é racista. O racismo está em cada pessoa.
Folha - O
sr. já foi abordado pela PM estando de folga?
Moreira - Já fui, e
o tratamento não foi discriminador. Trataram-me com dignidade. Eu já sofri
discriminação em colégio, em internato, administrado pela Igreja Católica.
Folha -
Ficou com trauma?
Moreira - Não, meu
intelecto é muito superior a isso. A minha formação de berço não deixou que eu
incurtisse isso. É do berço que as pessoas aprendem a ser preconceituosas.
Folha - Pelo
cargo que ocupa, o sr. se protege de forma diferente?
Moreira - Não vejo
necessidade. Se tivesse algum temor, não aceitaria o cargo. A grande maioria,
99,99% são bons policiais, honestos, dignos, legalistas, humanistas. Esses me
protegerão.
Folha - Qual
missão o sr. recebeu?
Moreira - Dar
agilidade às investigações, principalmente aquelas que estão em andamento e
aquelas que poderão chegar. Chegando, precisam ter uma resposta o mais rápido
possível.
Folha - Isso
não era feito?
Moreira - Isso
sempre foi feito. A Corregedoria sempre trabalhou com o imediatismo. Posso me
considerar como filho daquela casa. Antes de ser coronel, eu trabalhei, eu
vivenciei aquilo por 17 anos.
Folha - Os
policiais violentos, como os que se envolveram nos casos dos motoboys, são
oriundos de onde? Da zona leste, zona sul, do interior?
Moreira - Não temos
um estatística, um estudo voltado para isso. A Polícia Militar é uma
instituição aberta. A seleção é feita naturalmente.
Passam por um processo de
seleção, de investigação social, muitas vezes não se detecta qualquer anomalia
comportamental do indivíduo que está entrando.
Mas, de repente, quando ele
coloca isso daqui [a farda], ele acha que pode tudo. Aí, tem questão de
valores. De ética, moral, de berço.
Por que um policial militar as
vezes aceita uma propina? Não foi a instituição que ensinou. Isso está incutido
no "eu" dele. São os valores que adquiriu de berço. Eu entrei como
soldado e, como tal, nunca aceitei nenhum café. Por quê? Por que são valores que
eu aprendi no berço, com meu pai, minha mãe.
Folha - O
sr. vem com status de "remédio" para a PM. O que fazer para não
acontecerem casos como os dos motoboys?
Moreira - Meu
principal remédio é o exemplo. Ser exemplo positivo. Ser mais transparentes, ser
mais ágeis. Dar uma resposta com mais rapidez.
A todos que carecem de uma resposta, inclusive a própria família da vítima. Por que não? Aquilo que foi apurado precisa ser levado à família da vítima, ou à vítima.
A todos que carecem de uma resposta, inclusive a própria família da vítima. Por que não? Aquilo que foi apurado precisa ser levado à família da vítima, ou à vítima.
Folha - A
Polícia Civil diz que a PM dificultou as investigações em um dos casos dos
motoboys, não forneceu fotos...
Moreira - Não é
verdade. Não é verdade. De imediato foram presos os envolvidos e tudo está nas
mãos da Justiça. Isso não procede. O que pode ter acontecido naquele momento
foi uma falha de comunicação. Tenho quase certeza de que foi isso.
...[22]
O
discurso do coronel fornece vários indícios de contradição e de negação cínica,
como estatísticas irreais e exageradas: “99,99% são honestos”, “a corregedoria sempre trabalhou com o imediatismo”,
“nunca aceitei nenhum café”. Em especial, chama a atenção a pergunta: “Por que
não?”, ao dizer que precisariam dar uma satisfação à família das vítimas dos motoboys.
A pergunta indica a ideia incutida de que oferecer uma apuração dos fatos e
punição dos agressores seria uma condescendência oferecida por ele e não uma
obrigação básica da instituição.
Em
suma, a reconstituição e análise do livro Mudanças Sociais no Brasil
demonstrou a importância de Florestan Fernandes no movimento de superação de
análises psicologizantes do país ao propor um estudo sistemático de nossa
conjuntura a partir da dinâmica de classes. Desse modo ele aprofundou uma visão
de sociedade que já se encontrava em movimento e que vinha influenciando direta
ou indiretamente críticos e artistas, iluminando a ‘modernidade arcaica’ do
país, cuja manutenção interessa as classes privilegiadas na afirmação de seu
domínio. Os exemplos escolhidos, como trechos de “Explicação”, Gota d’água
e a entrevista com o coronel Moreira ofereceram apoio às categorias discutidas
pelo sociólogo no livro. Hoje os quadros de análise do país estão diferentes
daqueles dos anos 60/70, mas essa diferença se operou basicamente na
intensidade menor de ocorrência da ‘modernidade arcaica’, não na sua superação,
embora haja estudos que acreditem no seu esgotamento[23].
O que parece não ter se prolongado foi a crença do sociólogo na transcendência dos
problemas através da revolução marxista, não existindo hoje aparentemente
nenhuma outra forma de solução radical convincente que possa preencher esse
vazio e dar alguma esperança de um sistema mais justo e igualitário. O que
resta como triste consolo, nesse sentido, é o ensinamento de Florestan de que
lentamente a revolução burguesa abriria espaços para a mobilização de ajustes
na busca de uma operação menos cruel e discrepante do sistema de classes. Ajustes
que possam pelo menos minimizar aqueles mecanismos de manipulação do povo
apontados e que continuam até hoje a estimular quadros irracionais, como a
dificuldade de acesso à educação de qualidade, o populismo e a violência mascarada
ou assumida que acompanha este processo.
Bibliografia:
ANDRADE, Carlos Drummond de.
“Explicação” in Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
BUARQUE Chico. & PONTES Pontes.
Gota d’agua, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
DOMINGUES, José Maurício. “A
dialética da modernização conservadora e a nova história do Brasil” in Ensaios
de Sociologia: Teoria e Pesquisa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
Também disponível em: http://www.scielo.br/pdf/dados/v45n3/a05v45n3.pdf
(último acesso em 05/08/2010)
FERNANDES, Florestan. Mudanças
Sociais no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1960.
FERNANDES, Florestan. “As mudanças
Sociais no Brasil” in Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel,
1974.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro: história
de uma ideologia. 4ª edição definitiva com introdução de Alfredo Bosi.
São Paulo: Pioneira, 1983.
INCISA, Ludovico. Verbete
“Populismo” in BOBBIO, Norberto, MATTEUCI, Nicola. & PASQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução VARRIALE, Carmen C....
(et al.); coordenação da tradução FERREIRA, João, revisão geral FERREIRA,
João e CASCAIS, Luis Guerreiro Pinto – 6ª ed. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1994.
MOTA, Carlos Guilherme.
“Nacionalismo, Desenvolvimentismo, Radicalismo: Novas linhas da Produção
Cultural” in Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974: pontos de partida
para uma revisão histórica. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1978.
SCHWARZ,
Roberto. “Cultura e Política 1964-1968” in O pai de família e e outros
estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978, 2ª edição.
BADEN, Nancy. “We were born censured: The Dubious Legacy”
in The muffled cries. The writer and literature in authoritarian Brazil,
1964-1985. Boston: University Press of America, 1999.
PAGNAN, Rogério. “Prendemos muito
mais do que matamos” in Folha.com, caderno ‘Cotidiano’, 29/05/2010
(sobre entrevista feita em 28/05/2010, de São Paulo para a “Folha de São
Paulo) in http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/742609-prendemos-muito-mais-do-que-matamos-diz-novo-corregedor-da-pm.shtml
(acessado em 05/08/2010)
PINHEIRO, Paulo Sérgio.
“Autoritarismo e transição” in Revista USP. São Paulo: USP, 1991.
[1] LEITE, D.M, 1983.
[2] “Contudo ela (a revolução no horizonte cultural) não se produz,
em grande parte porque atitudes e motivações irracionais valorizam a
preservação de critérios obsoletos de comportamento, de organização das
instituições sociais e da intervenção da realidade” (FERNANDES, F. 1960, p
46)
[3] Capítulo 1 in FERNANDES, 1960.
[4] __________________________ p 67.
[5] in “Explicação” (DRUMMOND, C., 1992, p 33,34)
[6] Capítulo 1 in FERNANDES, F. 1974.
[7] Capítulo 2 in FERNANDES, F. 1960.
[8] Capítulo 3 ___________________
[9] Capítulo 4 ___________________
[10] Capítulo 5 ___________________
[11] Capítulo 6 ___________________
[12] Capítulo 7 in FERNANDES, F. 1960.
[13] Capítulo 10 in FERNANDES, F. 1960.
[14] MOTA, C. G., 1978, p 185.
[15] Gota d’agua (BUARQUE C. E PONTES P., 1976, p. 102, 103, 104)
[16] In Dicionário de
Política (citação de Wills em Ionescu-Gellner, 1994, p. 981)
[17] , in Dicionário de
Política (INCISA, Ludovico, 1994, p. 981)
[18] Cf. SCHWARZ,
R. Cultura e Política 1964-1968 in O pai de família e e outros estudos.
Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978, 2ª edição.
[19] BADEN, N., 1999.
[20] PINHEIRO, P.S, 1991.
[21] PAGNAN, Rogério. 2010. “Prendemos muito mais do que matamos” (entrevista
concedida de São Paulo para a Folha de São Paulo em 28/05/2010 e publicada em
29/05/2010)
[23] Cf. DOMINGUES, J. M. 2004. No ensaio de Domingues ele admite a
manutenção da dificuldade de solidariedade social, porém parece muito
otimista quando fala: “... no
plano das escolhas pessoais, do que se poderia chamar de “política da vida”,
das opções sexuais, religiosas, da situação da mulher e dos jovens, etc...
Mesmo que em meio a profundas desigualdades sociais, o grau de liberdade
nessas áreas aumentou de maneira exponencial e a pluralidade das formas de
vida que caracteriza a modernidade brasileira é extremamente ampla.” Nesse aspecto muitos são os exemplos que podem atestar a
continuidade de arcaismos em nossa sociedade, como mostram os acontecimentos
com a estudante que foi escurraçada pelos colegas e em seguida expulsa pela
instituição de ensino superior, por estar vestindo uma mini saia bem curta.
Mesmo que a lei tenha obrigado a faculdade a voltar atrás, só o fato de
termos chegado a este ponto já indica que uma comunidade que faz isso e que,
ao mesmo tempo usa biquínis fio dental tranquilamente na praia, só pode estar
ainda imersa no ‘modernismo conservador’, de alguma forma.