segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Gota d´água

GOTA D’ÁGUA:
O QUE PAIRA
NA QUEDA?

Assassinou os dois filhos e se matou.
Uma tragédia carioca: tresloucado gesto, vingança macabra, ciúme.
Joana de tal, por causa de um tal Jasão.[1]

O que o subtítulo, apresentado como notícia de jornal de crimes, tem a desestabilizar o leitor (ou espectador) da peça Gota d’água? Apenas mais uma tragédia familiar na periferia, contando com nossa indiferença disfarçada, nosso superficial susto. Mas o leitor informado já sabe que se trata de uma recriação de Medéia. A tragédia comum se destaca na identificação clássica.

Continuando, o leitor se informa do especial do Vianinha veiculado na Globo, e que inspirou a peça[2]: a nossa cultura de bicheiro, de samba, de macumba, que foram impressos à tragédia de Eurípides como denúncia social brasileira em plena ditadura. Nela, a heroína sucumbe após a vingança. E mais, o leitor se depara com isso retrabalhado pelos autores Paulo Pontes e Chico Buarque com várias outras contribuições, como: verso popular, canção urbana, teatro político e mudanças no enredo. Banaliza-se a herança aristocrática e volta-se à tragédia comum, mas com uma nota dissonante: o governo autoritário, a classe média que o apóia, a inconsciência, a paralisia das classes baixas: todos são convidados a partilhar da responsabilidade social que permeia a tragédia familiar.

Resultado: o ato final de Joana se potencializa e transborda, com infiltração incômoda, nesse percurso de ir e vir da tragédia comum à tragédia grega. Percurso formatado por uma miscelânea de referências e escolhas estéticas em que a erudição vem banhada no popular, o popular banhado na erudição. Lendo-a hoje, em 2007, a água que cai de Joana reflete, de algum modo, a água que está em cada bueiro da esquina; em cada gota que, convertida em violência, vira veneno (ou bala) e pode subitamente respingar na cara do inimigo, do amigo, de si mesmo, ou de quem passar inadvertidamente pela frente. É isso que sugere o infanticídio seguido de suicídio da protagonista: uma tragédia por demais comum e ao mesmo tempo incomum, louca e lúcida, distante e presente, desapercebida e aterradora. Querendo entender a sugestão, pretendo reconstituir um pouco da rede de relações que a torna possível.

Da tragédia Grega propriamente, a peça busca um personagem poderoso fragilizado, que suscita temor e pena. Como sabemos, Medéia era poderosa na sua aristocracia, na sua detenção de poderes sobrenaturais, na familiaridade com o Deus Sol, na coragem, determinação, e crueldade. Temida pela trajetória de ousada ajuda oferecida a Jasão na conquista do ‘velocino de ouro’, na fuga dos Argonautas, sacrificando seu irmão, e ainda ao regressar a Iolco, na vingança destinada ao tio de Jasão, que havia usurpado o trono do sobrinho. Frágil, porém, na sua condição de mulher e estrangeira, sem direitos na civilização grega; presa pelas imposições que possibilitam a manifestação do desejo ao homem, sem espaço para gozar de sua nobreza bárbara. Para contrabalançar seu baixo status de estrangeira, ela goza de respeito na comunidade. Respeito que emana da gratidão pelo fato dela ter acabado com a seca, a fome a infertilidade que tomava Corinto, condição dada a ela para poder ter seu pedido de asilo aceito[3]. Temos então uma protagonista complexa, capaz de suscitar terror e piedade, exatamente como pretendia a tragédia, segundo Aristóteles.

Essa característica funcional do mito, tal qual trabalhado por Eurípides. apresentava-se muito adequada aos propósitos de Chico e Pontes na intenção de suscitar envolvimento com a personagem Joana, cuja condição é duplamente desqualificada e explorada pelos mais ‘fortes’, no caso homens e abastados. Junto à pena, o temor é inevitável, na medida em que ela é uma ‘macumbeira’ capaz de dirigir energia destrutiva a seus inimigos e de transformar sua impotência em violência bárbara e irracional, o que de fato acontece quando ela termina por matar os próprios filhos e suicidar-se. A diferença aqui é que seus poderes não são, nem de longe, páreo para os do sistema que a esmaga. Sua dissimulação não encontra ingênuos a acreditar nela. Se há um Deus sol que a resgata para outras paragens, mais seguras, não são elas paragens imanentes.

Também o caráter complacente de Medéia, escondido no assassínio impiedoso dos próprios filhos, fica mais evidente em Gota d’água. O que mais aterroriza a platéia, qualquer mãe, qualquer ser humano e que, aparentemente não teria justificativa nenhuma, pode ser visto como benefício, se levarmos em conta a versão do mito, anterior a Eurípides, que apresentava os habitantes de Corinto como responsáveis pela morte das crianças, para vingar seus soberanos.

Segundo consta, Eurípides teria modificado sua versão a pedido dos governadores da cidade, que não queriam ver o seu nome ligado ao infanticídio. Faz, então, Medéia se incumbir do assassinato dos filhos, para que seu marido traidor sofra ainda mais. Ao fazê-lo, o autor certamente aumentou a tensão da heroína, acessando forças inconscientes muito além do aceitável. Em todo caso, a informação tradicional, de que as crianças seriam vítimas do rancor da população transferido para a prole da inimiga, leva o público a considerar a morte das crianças como um mal necessário, já que elas teriam fim pior.

Medéia (verso 1411[4]):




Não volto atrás em minhas decisões, amigas;
Sem perder tempo matarei minhas crianças
E fugirei daqui. Não quero, demorando,
Oferecer meus filhos aos golpes mortíferos
De mãos ainda mais hostis. De qualquer modo
Eles devem morrer e, se é inevitável,
Eu mesma, que os dei à luz, os matarei.

Podemos, no entanto, ao analisar os versos 1189 – 1197, abaixo, perceber que a feiticeira poderia ter usado de mágica para levá-las em sua fuga, mas aí a dimensão da vingança ao Jasão seria atenuada, e seu pathos não o permitiu:

Medéia (verso 1189[5]):




Adeus, meus desígnios de há pouco! Levarei
meus filhos para fora do país comigo.
Será que apenas para amargurar o pai
vou desgraçá-los, duplicando a minha dor?
Isso não vou fazer! Adeus meus planos... Não!
Mas, que sentimentos são esses? Vou tornar-me
alvo de escárnio, deixando meus inimigos
impunes? Não! Tenho de ousar! A covardia
abre-me a alma a pensamentos vacilantes.

Já na peça brasileira, apesar de não ter conseguido consumar a morte de seus inimigos, Joana tem motivos mais densos para pensar que o legado da vida não será um benefício às crianças, ou a ela mesma. Certamente serão maltratados, na medida em que seus poderes não são suficientes para livrá-los de uma condição difícil e injusta. Das forças de Medéia, Joana ficou apenas com uma pequena parte, e da precariedade, ficou com tudo e um pouco mais.



Joana:


Meus filhos, mamãe queria dizer
Uma coisa a vocês. Chegou a hora
de descansar. Fiquem perto de mim
......................................................
A Creonte, à filha, a Jasão e companhia
Vou deixar esse presente de casamento
Eu transfiro pra vocês a nossa agonia
Porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento
De conviver com a miséria todo dia
É pior que a morte por envenenamento.
[6]

Por outro lado, junto ao ‘menor dos males’ que uma mãe oferece a si mesma e sua prole, também se apresenta em Joana o ímpeto vingativo, violento, irracional de Medéia. Desde o início da peça, vemos a cisão daquilo que sustentava sua personalidade: seu ‘instinto de vida’ se apoiava exclusivamente no amor e desejo devotado ao marido. Vários foram os sacrifícios, e todos se justificavam na presença física do homem amado, fazendo-a mulher. O abandono, justamente quando ele começava a despontar como sambista respeitável, produz um vazio que a desestabiliza profundamente. Somadas a isto, as perdas anteriores, ligadas à conquista de Jasão (sua juventude, sua energia consumida), se apresentam desnecessárias. Sem o ‘prêmio’ de seus esforços, eles perdem o sentido. A percepção de ter sido usada e jogada fora quando não mais necessária, trocada por alguém mais jovem e influente, demonstra quão ilusória fora a idéia de ter sido amada; os dez anos deixam de ser motivo de orgulho para serem motivo de vergonha e ela se apresenta a si mesma, e à comunidade, como ser logrado. Sua força, que lhe dava identidade, fora toda canalizada para o sucesso alheio, nada restando a ela.

Essa experiência de mulher abandonada não poderia ser mais comum. Quantas não conhecemos que já passaram por isso? E até hoje, o que se espera de uma mulher nessa situação seria um período de luto que deve ser superado para o bem de todos.

Vizinhas:


Comadre Joana
Recolhe essa dor

Guarda o teu rancor
Pra outra ocasião

Comadre Joana
Abafa essa brasa
Recolhe pra casa
Não pensa mais não
Comadre Joana
Recolhe esses dentes
Bota panos quentes
No teu coração
[7]

Como Joana não colabora com essa expectativa, demonstrando ciúmes desmedido, raiva, inconformação, e na medida em que seus inimigos temem sua força; o exílio de sua comunidade (A Vila do Meio Dia), de seu lar (casinha com várias prestações já pagas), é a ela imposto de forma extremamente violenta, com ameaças verbais e presença da polícia, junto de uma compensação em dinheiro, mascarada de favor. Nesse ponto é importante ressaltar a carga social que acompanha a trajetória da mulher, além do fato dela já ser em si determinada pela injusta situação inferiorizada no sistema patriarcal.

Joana é uma brasileira pobre. O próprio nome dado a ela reforça isso. É o feminino de João, nome masculino dos mais populares aqui. Maria seria o feminino equivalente em popularidade; seguido de outros como Ana. Porém, o que temos é Joana: masculino tornado feminino. Sendo feminina na dedicação, na doação; masculina na altivez, na indisposição ao conformismo, na violência; Joana carrega também no nome algo de um andrógino de baixo poder aquisitivo. Já os nomes dos homens algozes de sua fragilidade amorosa e política, Jasão e Creonte, não se alteraram, continuam os mesmos da tragédia de Eurípides. Creonte é um representante da dominação capitalista e Jasão, atraído, se une a ele. Não têm, portanto, uma identificação genuína pela terra, e a manutenção de seus nomes fica aí coerente.

A condição de feiticeira de Medéia, transformada em umbandista ou macumbeira, transpõe com sucesso o caráter bárbaro da heroína, detentora de saberes mágicos em terra estrangeira. O umbandista no Brasil é o elemento africano transplantado, vítima da escravidão, que resistiu adaptando sua cultura ao local. Joana toma então contornos de uma brasileira típica, miscigenada na raça, na cultura, na religião; exercendo a herança escravocrata de explorada sem direitos num momento de ditadura militar, quando a crescente desproporção de renda das classes é o modelo implantado pelo regime autoritário.

A realeza de Creonte se dá no fato dele ser o dono de um condomínio de moradores de baixa renda, no Rio de Janeiro, que fez as vendas em sistema de empréstimo a juros altos. Todos devem ser submissos a ele por não estarem em dia com as prestações, podendo ser expulsos e perder o investimento feito. Essa estratégia de atualizar o poder de um ‘rei’ diante de seus ‘súditos’ foi criticada como inverossímil por Sábato Magaldi na época de lançamento da peça, já que a cobrança de correção monetária não era, naquele momento, permitida aos particulares. No entanto Sábato admite que, apesar de incômoda, a inverossimilhança serve como “símbolo do sistema imobiliário vigente”[8].

O que vemos em Gota D’água é, então, o drama de Medéia como cidadã, estendido ao de todos os outros habitantes do condomínio, e por analogia, ao de todos os brasileiros pobres procurando moradia. A tensão da heroína é partilhada por um grupo, não como sugestão, mas se materializa de fato nos vizinhos e nas vizinhas. Eles poderiam ser identificados apenas à função de comentadores da ação do coro Grego, voz da comunidade; porém passam a fazer parte direta do conflito, sendo conscientizados e liderados por Egeu contra os abusos de Creonte. A tentativa do ‘rei de Atenas’ é frustrada pelo inimigo com a oferta de quitação das dívidas anteriores e melhorias no condomínio: construção de uma quadra de futebol, colocação de telefones e reforma das fachadas. A ilusão de estarem sendo beneficiados faz com que os moradores parem com seu movimento de protesto e façam um esforço para continuar a pagar as prestações que restam e seus juros exorbitantes. Essa tática, elaborada por Jasão, já ‘vendido’ ao sogro, tem um desenvolvimento um tanto quanto ‘didático’, bem ao gosto dos preceitos Brechtinianos; procurando alertar claramente o público mais ingênuo com relação às estratégias governamentais de ludibriar o povo e arrochar ainda mais os baixos salários. O apelo ao futebol, a uma ‘modernização’ e ‘embelezamento’ do espaço comunitário são significativos e nos remetem ao slogan: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Não apenas Jasão aparece como traidor da sua gente, mas também os moradores, sem perceber, colaboram com o inimigo contra eles mesmos e compactuam com a injusta perda de moradia e imposição de exílio, feitas à Joana, ao deixar-se pacificar pelas ofertas e aceitar trabalho na festa de casamento de Jasão.

Se, por um lado, a inserção de ações paralelas na incitação ao protesto e seu abafamento conquistam o intento de didatismo, caro à reflexão política que deve acompanhar o teatro com preocupações sociais, segundo Brecht; por outro favorece um aspecto da peça que é a extensão excessiva de sua narração, tornando-a um pouco cansativa.

Somadas a este recurso épico, as músicas também têm função de distanciamento, quebrando o realismo, a ilusão, e lembrando ao público que aquilo nada mais é do que um espetáculo. As letras e melodias, verdadeiras obras primas que acompanharam as gerações vindouras, reforçam os muitos dramas envolvidos, a começar pelo de Jasão, o autor da música tema. No entanto, ‘Gota d’água’ é paulatinamente apropriada por Joana, e termina por pairar como parte perigosa do copo de todos os cidadãos: aqueles desrespeitados pelo regime, que podem explodir em vingança sangrenta, e aqueles que com eles convivem.



Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
Faça não
Pode ser a gota d’água.
[9]

Joana dessa forma, abusada como mulher e cidadã, é pressionada a uma saída apenas: submissão e sobrevivência precária, tendo que começar do zero novamente num outro lugar, só que com dois filhos, muitas rugas e dores a mais. Assim como Medéia, instigada pela necessidade de dignidade em detrimento da ‘sobrevivência’, Joana deixa-se levar pela fúria irracional atacando seus inimigos. Como foi dito, porém, o Creonte brasileiro não é presa fácil, e rejeita os bolinhos envenenados que ela oferece à sua filha. Joana assassina, em seguida, os filhos, para poupá-los, acreditando no ‘menor dos males’ e, ao mesmo tempo, para puni-los, dando vazão a uma rejeição destacada desde o início, quando coloca parte da culpa no nascimento e criação de seus rebentos por um envelhecimento prematuro que teria levado Jasão a considerá-la menos atraente. Também, e principalmente, realiza a grande vingança de retirar os frutos de seu amor da estirpe de Jasão, negando a ele a continuidade da vida através dos filhos. A sobreposição de ‘instinto de morte’ fica evidente por ser Joana igualmente punida e por não haver nada mais auto-flagelador para uma mãe do que sacrificar ela mesma sua cria. De forma diferenciada de Medéia, seguindo a idéia de Viana Filho, suicida-se completando o processo de auto-destruição.

As forças do ID se manifestam com toda a sua cólera contra o ‘super ego’ civilizador. O excesso de violência que sofreu do sistema ‘civilizado’ não parece ser menos cruel do que o modo de vida bárbaro das antecessoras tribais de Medéia, no sistema matriarcal, que sacrificava humanos na busca de revitalização na morte, como continuidade do ciclo da vida[10]. Um grande ‘não’, absurdo e cheio de razão é o resultado da gota final, denunciando a "interseção do mal que se sente (a dor) e do mal que se inflige (a iniquidade)’[11]. Crueldade bárbara por crueldade civilizada. Uma reação plena de desequilíbrio, com forças edificantes e destruidoras, que dão à peça carioca brilho e energia. Do contrário teríamos apenas uma fórmula maniqueísta, direcionada à denúncia social.

As virtudes e mesmo os ‘defeitos’ da peça foram cuidadosamente elaborados por Chico e Pontes para atingir um determinado efeito: envolver o espectador num emaranhado de sensações, encantamentos, estranhamentos, lucidez política, desesperança e indignação. Na introdução ao texto dramático, os autores compartilham as preocupações que encaminharam sua criação, elencando três, consideradas fundamentais: a denúncia da função do regime autoritário na implantação do modelo de intensa desproporção de renda das classes, bem como o papel da classe média na sua legitimação; a busca da identidade cultural brasileira na figura e trajetória do povo, remontando ao programa da dramaturgia nacional popular iniciado na década de 60; e finalmente a preocupação formal. Foi ressaltada a necessidade de resgatar a palavra como ‘centro do acontecimento dramático’, ou seja, como veículo de reflexão de uma realidade complexa, ferramenta de transporte ao pensamento racional, profundamente indagativo da vida humana e social.

Os autores elegeram a poesia como a forma mais adequada de trabalhar a palavra, já que, aliada à música, ela persegue o questionamento da vida, no que tem de palpável, concreto, frio, calculado, por um lado; sem deixar de envolver o que tem de obscuro, relativo, passional, imprevisível por outro. Com o verso propuseram-se a buscar uma racionalidade, que eles chamaram de ‘não estreita’, evitando um discurso realista.

No entanto, o efeito geral das falas dos personagens juntamente com a estrutura da peça, estão fortemente amparados num mundo imaginário, não de todo, mas com uma boa carga realista, se o compararmos com outras experiências da arte moderna. Obras de vanguarda consideraram o realismo insuficiente para abarcar a complexidade da experiência humana na modernidade, e procuraram evitá-lo. Porém, o teatro popular tende a apropriar-se de formas expressivas que estabeleçam uma comunicação imediata com o espectador, para garantir sua compreensão por amplas camadas da população. É o caso de Gota d’água, que se afasta do realismo em alguns aspectos, mas não procura radicalismos experimentais para não correr o risco de tornar-se hermética. Ao privilegiar o raciocínio ‘não estreito’ e ao mesmo tempo ambicionar um público largo, a obra volta-se para a poesia popular.

Chico e Pontes criaram um texto profundamente melopéico, que percorre a peça desde a primeira fala até a última, sem ficar incompatível com a intenção de reconstituir o coloquialismo das variantes lingüísticas de classes cariocas desfavorecidas, da década de 70. Há elevação da forma poética ao status de molde de todo o mundo imaginário, que será erguido diante dos olhos e ouvidos do espectador, assim como na antiga tragédia Ática. Porém o tom elevado é invertido, seguindo a tendência moderna, e a informalidade é construída através de uma escolha lexical coerente com a variante dos personagens, carregada de expressões idiomáticas próprias, gírias, palavras de baixo calão, e freqüente rebaixamento de imagens. O caráter chulo da linguagem do subúrbio é intensamente explorado, criando um certo choque estético.

A peça teve grande impacto de crítica e de público quando lançada, e acredito que não tenha sido uma ‘voz’ transitória. Embora, nos dias de hoje, o questionamento social que ela encerra possa parecer, em alguns aspectos ‘fora de época’, porque aparentemente simplificado e insuficiente para os rumos atuais, Gota d’água ainda tem um poder iluminador e iluminado, atual e contundente, graças à sua forma ‘não estreita’.

Tivemos, em fevereiro deste ano, discussões acaloradas sobre a morte brutal de um garoto no Rio de Janeiro, que fora arrastado pela rua, preso ao carro e esmagado contra o asfalto; e de como um de seus algozes, menor de idade, reforçou desvios tão cômodos para o sistema, como a exigência da diminuição da idade penal. Estamos em meio a casos e casos de tragédias comuns que se repetem, de Joanas, Joãos e Anas, usados, descartados e vingativos que saem por aí matando passantes, inimigos e filhos, e se matando a cada dia. Essas Joanas que amamos e odiamos, que queremos ajudar e não ajudamos, têm muito ainda que comover e destruir, reproduzindo o ‘não’ bárbaro, em meio à barbárie da civilização.


Cecilia Silva Furquim Marinho

(Trabalho apresentado para o professor Jayme Guinsburg no programa de pós graduação em literatura Brasileira, na disciplina ‘Autoritarismo, Violência e Melancolia’, realizada no primeiro semestre de 2007)




Notas:
[1] Citação não literal dos dizeres na capa da peça Gota d’água (Buarque & Pontes, 1976)
[2] Na introdução à peça, os autores afirmam que a adaptação de Medéia para a tv “forneceu a indicação de que na densa trama de Eurípides estavam contidos os elementos da tragédia” que queriam revelar. (id., p.xx). O roteiro de Oduvaldo Viana Filho foi publicado na ‘Revista Vozes’ (Viana Filho, 1999 – p127-158).
[3] Candido, Dezembro de 2001.
[4] Medéia, tradução de Mário da Gama Kury (Eurípides. 1991, p 69)
[5] Id. p 62.
[6] Buarque e Pontes. Ibid. p 167.
[7] Buarque e Pontes. Ibid. p 37.
[8] Magaldi (Jornal da Tarde, 30/01/76)
[9] Buarque e Pontes. Ibid. p 159.
[10] Rinne, 1988 – p43.
[11] Janine Ribeiro, 1999, p 12.



BIBLIOGRAFIA

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BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota D’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

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